rofessor de Direito da Universidade Yale, Daniel Markovits faz parte da elite educacional do mundo. E isso fez com que ele começasse a refletir sobre como o conceito de meritocracia é problemático. Ele surpreendeu a turma de formandos em 2015 quando fez um discurso de encerramento de curso em que dizia que o conceito do mérito é prejudicial para os mais pobres, para a classe média e também para as elites – que têm se utilizado da teoria para explicar por que alguns chegam mais longe do que os outros.
Dessa reflexão surgiu o livro A Cilada da Meritocracia (Intrínseca). “A meritocracia tornou-se uma forma de exclusão, de privilégio intergeracional e dinástico. Mas pretende refletir a justiça – portanto, disfarça a desigualdade”, diz Daniel em entrevista para a Você RH. Leia a conversa com o autor a seguir.
Ao contrário do que ouvimos no mercado e na academia durante muitos anos, a sua percepção é de que a meritocracia é uma farsa. Por quê?
Por “farsa”, quero dizer que, em vez de capturar alguma excelência ou valor verdadeiro ou natural, o que chamamos de mérito é o resultado de um longo argumento ideológico, que é projetado para “lavar” uma distribuição ofensiva da vantagem – com o objetivo de disfarçar privilégios e fazer coisas que estão erradas parecerem certas. Mas é importante para o livro que o mérito não seja vergonhoso: quem sai na frente não é chamado de vilão. Na verdade, a meritocracia leva pessoas normalmente decentes, que se comportam como as pessoas geralmente se comportam, a produzir consequências muito ruins.
Como a cilada da meritocracia foi construída?
A armadilha foi construída por dois mecanismos. Primeiro, as elites começaram a gastar mais e mais (dinheiro, tempo, habilidade) na educação de seus filhos. O resultado é que a competição entre os filhos da elite se tornou cada vez mais intensa e todas as outras crianças ficaram excluídas de uma vantagem significativa. Em segundo lugar, adultos educados redesenharam o trabalho para favorecer precisamente a educação que eles (sozinhos) possuem. Isso significa que obter o tipo de educação que apenas os ricos podem pagar é cada vez mais necessário para conseguir os melhores empregos.
Esses dois mecanismos se reforçam – à medida em que os cargos importantes pagam mais, as elites investem mais na educação dos filhos, o que distorce ainda mais o trabalho para favorecer as habilidades da elite, o que aumenta ainda mais os salários dos cargos importantes, e assim por diante.
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e o conceito da meritocracia é bastante usado para explicar o sucesso de pequenos grupos. Por que essa teoria é tão usada em locais de alta desigualdade?
A teoria é incrivelmente atraente para as elites por dois motivos, um bom e outro ruim. O bom é que, no início, a meritocracia realmente ajudou a quebrar as formas de exclusão baseadas em raça, gênero, religião e assim por diante. Nenhum grupo detém o monopólio do talento ou do trabalho árduo e, portanto, a meritocracia ajudou os grupos excluídos a entrar na elite.
O ruim é que a meritocracia disfarça como virtude uma vantagem injusta. A alta educação é necessária para progredir, mas totalmente fora do alcance da classe trabalhadora e até mesmo da classe média. Assim, a meritocracia tornou-se uma forma de exclusão, de privilégio intergeracional e dinástico. Mas pretende refletir a justiça – portanto, disfarça a desigualdade.
No seu livro, você diz que a falácia da meritocracia atinge não apenas os pobres e a classe média, mas as elites também. Por quê?
Existem dois problemas para a elite. Em primeiro lugar, a competição meritocrática tornou-se tão intensa que, embora ter pais ricos seja necessário para que os filhos progridam, não é suficiente. Assim, as crianças ricas enfrentam uma pressão intensa e extensa para ter sucesso, e muitas não estão à altura. Isso é difícil.
Em segundo lugar, mesmo as elites que parecem vencer acabam levando uma vida alienada. Se você é rico por possuir terras, sua riqueza o liberta. Você pode misturar sua riqueza com o trabalho de outras pessoas e extrair aluguéis. Mas se você alcança a riqueza devido ao seu próprio treinamento e às suas habilidades, você se torna subjugado por sua riqueza. A única maneira de obter renda com sua riqueza é misturá-la com seu próprio trabalho e trabalhar em quaisquer tarefas que o mercado pague. Assim, as elites tornam-se mão de obra alienada e explorada, ao mesmo tempo que também enriquecem.
É muito importante para o livro que essa não seja uma razão para que todos tenham pena das elites ou façam qualquer coisa para aliviar a alienação das elites. Mas significa que a desigualdade meritocrática não beneficia, no final, nem mesmo aqueles a quem parece favorecer.
O que as empresas poderiam fazer para lutar contra os problemas da meritocracia?
Esta é uma pergunta difícil. Eu acredito que existem oportunidades para oferecer a trabalhadores que têm habilidades médias de forma lucrativa – e as empresas estão ignorando isso. Mas uma das principais lições do livro é que toda a nossa sociedade deve escapar totalmente da armadilha da meritocracia. Indivíduos e empresas não podem fazer isso uma de cada vez.
A pandemia de covid-19 trará uma consciência maior sobre a importância do bem comum ou irá ampliar a falácia da meritocracia?
Acho que a covid-19 tornará as coisas muito, muito piores. Estou co-presidindo um grupo de trabalho sobre covid e escolas nos Estados Unidos. Descobrimos que, por aqui, o aluno médio de uma escola pública perdeu mais de um terço de um ano de escolaridade, enquanto o aluno típico de uma escola privada de elite não perdeu escolaridade. Os efeitos disso na desigualdade de longo prazo – na universidade, no trabalho, no bem-estar ao longo da vida – serão enormes.