“Não tem nada lá na empresa ainda. Meu papel é implementar o ciclo de talentos a partir do zero: definir competências, estruturar o ciclo de avaliação de desempenho, sucessão, pesquisa de clima, PDI, treinamentos…”.
Já tive essa conversa muitas vezes. Sempre com profissionais seniores que foram contratados para implementar uma área de RH ou de gestão de talentos em uma organização. Se você atua em uma multinacional ou empresa nacional que já tem esse processo amadurecido, deve ser difícil imaginar uma organização que funcione sem essas práticas estabelecidas. Mas elas existem.
O que percebo na fala das pessoas é que, muitas vezes, começamos o processo com uma cartilha preestabelecida e implementamos as áreas e processos com pouco questionamento da sua real necessidade ou efetividade. Com uma visão quase dogmática, criamos estruturas com as quais já convivemos em outras empresas, mesmo tendo dúvidas sobre sua efetividade para o negócio (e certeza do incômodo que esse modus operandi traz para grande parte dos colaboradores).
Evento que lança tendências
Voltei há duas semanas do Irresistible 2024, a convenção organizada pela Josh Bersin Company, empresa de um dos principais analistas de RH do mundo. Fazia alguns anos que não participava de um evento organizado por eles, mas continuava acompanhando de perto as iniciativas e conteúdos do grupo.
Meu primeiro contato com Bersin aconteceu em 2009. Desde então, tenho admiração pela sua capacidade de criar frameworks que são, ao mesmo tempo, simples e embasados. Foi em suas convenções, no início da década passada, que conheci as 6Ds e outros temas igualmente relevantes.
Há mais de 20 anos ele se destaca pela capacidade de identificar padrões no mercado e propor tendências que se propagam quase sempre. Bersin disseminou o termo LXP (Learning Experience Platform, as plataformas de aprendizagem mais interativas) e cunhou expressões como learning in the flow of work (aprendizado no fluxo de trabalho), por exemplo.
Quando participo desses eventos, eu tenho um só objetivo: ser chacoalhado. Topar com novos olhares, cases, abordagens que questionem a maneira como penso ou estruturo minha prática de consultoria. O evento foi perfeito nesse sentido.
Falamos de IA? Sim, mas com uma abordagem prática e crítica, sem paixões ou negações. A discussão principal foi outra: qual o papel do RH nos tempos atuais, na chamada economia pós-industrial?
No momento em que vivemos, os dados apontam para uma escassez preocupante de talentos – problemas com saúde mental em alta acompanhados por um desengajamento crescente estão entre os principais motores desse cenário. As pessoas que queremos nas nossas empresas trazem novas exigências: empresas com impactos positivos no mundo, trabalho flexível e semana de quatro dias.
Podemos tirar sarro das exigências e dizer que isso é coisa da geração Z. Mas o fato é que são eles que têm as habilidades de que precisamos. Sabe a famosa guerra dos talentos? Ela acabou. E as empresas perderam.
Os quatro pilares
Nesse contexto, Bersin propõe uma nova abordagem, que ele chama de RH Sistêmico. Ela se baseia em 4 pontos principais:
- Visão integrada: RH deixa de operar em subprocessos e passa a ter um olhar holístico (ou sistêmico). As áreas de RH devem operar em conjunto para garantir a presença de talentos humanos efetivamente engajados com o processo (ou “ativados”, mais uma nomenclatura proposta por ele). A partir de uma visão de impacto versus velocidade de implementação, o C-level decide entre os 4Rs (outro framework): recrutar, reter, reskilling ou redesenhar a organização.
- Inteligência de talento (Talent Intelligence): precisamos utilizar todos os dados para a tomada de decisão relativa às decisões envolvendo pessoas em nossa organização. As novas plataformas de gestão de talentos estão se preparando para utilizar a IA para analisar informações internas (cargos, habilidades, remuneração, carreira, redes) e externas (dados de mercado, informações da indústria, tabelas salariais e de cargo, conteúdo). O ponto de partida já é difícil: ter internamente as informações organizadas. Para mim, contudo, o grande desafio é a falta de familiaridade com a estruturação de processos no RH. Empresas como a Lightcast e a Skydive (recém-adquirida pela Cornerstone) são exemplos das mudanças que já estão acontecendo no mercado.
- Foco no colaborador: é um assunto mais próximo de nós, falamos de employee experience há alguns anos. O horizonte agora é aceitar que o futuro do trabalho já chegou e fazer as mudanças necessárias, sem desconfiar da seriedade das demandas da força de trabalho.
- Foco no negócio: a área de RH deve existir para resolver os problemas complexos do negócio. Não é por acaso que uma das frases mais famosas do Josh é “Todo problema de negócio é um problema de pessoas”.
Esse último ponto é o que me fez lembrar da conversa do início do texto. Precisamos deixar nossa cartilha de lado. O olhar clássico de gestão de desempenho existe mais para servir ao RH do que ao negócio (e muito menos ao colaborador). No meu mundo de aprendizagem corporativa, não podemos continuar a implantar Universidades Corporativas (que muitas vezes são apenas trilhas em um LMS) apenas porque essa é a referência que conhecemos.
O primeiro e mais fundamental passo é entender qual o desafio de talentos das nossas organizações. Fiz essa pergunta em um webinar recentemente com 30 empresas diferentes e vi a dificuldade que temos em identificar essa questão. E, não, o negócio também não sabe a resposta. Mas pode nos ajudar a construí-la.
Sem entender em profundidade quais os reais desafios de talentos, vamos continuar implementando processos que, muitas vezes, nem nós mesmos acreditamos. Só não sabemos quais são as alternativas. É um momento de coragem e, especialmente, de redesenho e requalificação da área. Precisamos agir.