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Empregabilidade de pessoas trans

No Brasil, só 4% de transexuais têm carteira assinada. Mas, seja pela agenda de diversidade, ou iniciativas como a TransEmpregos, há uma luz à frente.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 6 abr 2024, 12h40 - Publicado em 3 abr 2024, 18h44
Pessoas em movimento andando em um andar de um prédio.
 (Getty Images/Reprodução)
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Não há rotina no trabalho de Jackeline Andressa Lima, subgerente de loja num mercado Assaí em Rondonópolis, Mato Grosso. Num dia tem filas grandes nos caixas por uma combinação de clientes que querem bater papo e falta de pessoal, devido a ausência médica ou outro motivo. No seguinte, não tem fila, mas a entrega de um produto atrasa. Essa profissional atua para achar soluções nas demandas mais críticas, desde o estacionamento até o portão de saída da loja. “Quando não acontece de tudo ao longo do expediente é porque tem alguma coisa errada”, ela brinca. 

Mas todos os dias nessa loja há algo de muito certo acontecendo. Os clientes e colegas dela veem um raro caso no Brasil de uma transexual em um cargo de liderança. E nem é a primeira vez de Jackeline. Ela já tinha uma posição de gestora no seu emprego anterior, mas lá sua situação era um tanto diferente. Por se tratar de uma organização mais conservadora, Jackeline se apresentava como homem. “Eu era uma pessoa na empresa e outra fora dela. Até que fiz minha transição de gênero e não teve jeito: eles tiveram de me aceitar como eu sou mesmo.”

Jackeline Santos
Jackeline Andressa Lima conseguiu uma posição de liderança, algo raro entre transexuais: é subgerente de loja no Assaí. (Assaí/Divulgação)

Para a vaga no Assaí, a profissional já se apresentou no gênero feminino com o qual se identifica, e ganhou a vaga num processo de recrutamento em que não houve qualquer distinção entre homens e mulheres que já nasceram assim e a transexual. Ela não conseguiu o emprego por conta ou uma iniciativa pontual da empresa: ganhou por competência. E não se arrepende da mudança para o mercado. “Aqui me sinto muito acolhida e nunca passei por uma situação de preconceito. Acho que, até por eu ter uma posição de liderança, as pessoas evitam fazer algum comentário inadequado.”

Segundo Sandra Vicari, diretora de Gestão de Gente e Sustentabilidade do Assaí, ter uma profissional trans em posição de destaque na loja é uma consequência natural de um negócio que recebe todos os tipos de público. “Temos muitos clientes LGBTQIA+ nas nossas unidades, então precisamos, sim, que eles se vejam nas pessoas que os atendem”, afirma a executiva. 

Mas não é só essa identificação que está por trás desse posicionamento. O Assaí tem um programa de diversidade que promove, entre seus pilares, a inclusão de profissionais LGBTQIA+. “O acolhimento da pluralidade é um norteador da empresa, e nosso comitê de sustentabilidade assessora o conselho da companhia. O tema é visto de uma maneira muito séria e com bastante foco aqui, tanto que colocamos essa questão no padrão mais alto da nossa governança.”

Teríamos uma sociedade bem diferente se todas as empresas tratassem do assunto com a perspectiva do Assaí. Mas a realidade no país é bem diferente. De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra), apenas 4% das pessoas trans e travestis estão no mercado de trabalho formal, e 0,02% teve acesso ao Ensino Superior. Não é à toa que muitas delas acabam se voltando para a prostituição ou estejam em situação de rua. E parte desse problema está no recrutamento tradicional.

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O telefone que nunca toca

Segundo Maite Schneider, primeira profissional trans Linkedin Top Voice, em 2019, e cofundadora da plataforma TransEmpregos, as organizações ainda têm receio de abrir vagas para profissionais trans. Um medo que reflete no número baixíssimo de pessoas transgênero em posições mais elevadas. Para Maite, no entanto, a violência contra esse público (o Brasil foi considerado o país que mais mata transexuais no mundo, e isso pelo 15º ano consecutivo) criou uma baixa autoestima crônica em profissionais trans. 

“O primeiro desafio a vencer é o autoboicote. Vivemos numa sociedade que nos ensinou a ter medo e a achar que não vamos conseguir nem temos competência para um bom emprego”, diz a consultora. “Vemos muito na TransEmpregos pessoas que têm duas graduações, pós, mestrado, e que não confiam no próprio talento porque, durante muito tempo, se candidatavam para vagas, tinham aderência ao cargo, mas o telefone nunca tocava.”

Isso vai minando a confiança das pessoas, tanto que muitas com hard e soft skills desenvolvidas, procuram o caminho do empreendedorismo, já que não conseguiam emprego. “Precisamos resgatar esse lugar de potência que elas têm, mostrar que são capazes, que podem tudo.”

Maite afirma que o processo seletivo, quando se trata de alguém transexual se candidatando, costuma ser duas ou três vezes mais longo do que no caso de cisgêneros (pessoas que se identificam com o sexo biológico com que nasceram), mesmo no caso de vagas afirmativas. “Ainda há muito preconceito na fase do recrutamento”, afirma. “Para se ter uma ideia, levando em consideração o mesmo nível de hard e soft skills, e o mesmo nível de senioridade para determinada vaga, um homem trans tem muito mais chance que uma mulher trans. Se, além de trans, ela for preta, dificulta em 72% a contratação. Quanto mais fora do padrão essa pessoa for, maiores serão as exclusões que o sistema impõe. Então a gente precisa que as ações afirmativas comecem a ser pensadas com essa perspectiva de interseccionalidade e com recortes mais amplos.”

Plataforma para aproximar empresas e profissionais

Maite Schneider
Maite Schneider, cofundadora da TransEmpregos: “Vivemos numa sociedade que nos ensinou a ter medo e a achar que não vamos conseguir nem temos competência para um bom emprego”. (TransEmprego/Divulgação)

Quando profissionais trans, enfim, entram numa empresa, o desafio passa a ser a obtenção do respeito de seus pares e gestores. É o respeito ao nome social, ao uso do banheiro identificado com o gênero escolhido… Também falta um plano de carreira.

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A TransEmpregos atua justamente para mudar essa realidade. Ela opera em três frentes. A primeira é no estímulo à abertura de vagas, não só em empresas, mas também entre pessoas físicas. “Qualquer pessoa pode entrar na plataforma e buscar babá, cuidador de idoso, jardineiro…”, diz Maite Schneider.

O primeiro triunfo da plataforma na conquista de vagas foi com Luisa Marilac, que conquistou um emprego num motel. De perfil midiático, ela ficou famosa e publicou a autobiografia Eu, Travesti. Já no ano passado, 1.013 pessoas trans foram contratadas via TransEmpregos. 

A segunda frente de atuação é ajudar as empresas a acabar com os preconceitos contra trans. Ela até oferece uma cartilha gratuita tanto para os RHs quanto para profissionais. Maite vai às empresas pessoalmente explicar por que a diversidade compensa e não deve sofrer qualquer barreira. 

E a terceira frente é dar apoio a projetos ligados à empregabilidade – como a primeira escola de eletricistas trans criada pela EDP, companhia que atua nos segmentos de geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia. 

Um apoio da agenda ESG

Iniciativas como a da TransEmpregos têm mudado um cenário que antes era terra arrasada. A ascensão da agenda ESG também tem ajudado com a ênfase que as empresas precisam dar para o tema diversidade. Agora, profissionais trans ao menos têm caminhos para fazer um programa de trainee exclusivo para esse público, por exemplo. Outro motivo para uma perspectiva mais otimista é que, em 2023, houve um aumento de 16% no número de empresas parceiras da plataforma em relação ao ano anterior: agora já são 2.559 no Brasil buscando atrelar a pauta à sua marca. 

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É o caso da Vivo. A companhia fechou 2023 com 108 profissionais trans em seu quadro, reforçando um compromisso com a diversidade e a inclusão. Isso representa um crescimento de 54% ao que a empresa tinha em 2022. Em janeiro, mês da visibilidade trans, a companhia preparou uma live para seu público interno focada no respeito à inclusão, apresentada pela transexual Pepita, do canal de YouTube Cartas pra Pepita. A ação faz parte da Jornada Vivo Diversidade, que a cada mês discute temas relevantes com toda a empresa. Cada assunto é acompanhado do lançamento de uma nova ação, política ou benefício.

Retificação dos documentos

Outro bom exemplo é o do Grupo Pão de Açúcar. Pelo segundo ano consecutivo, a companhia apoia o projeto Orgulho do meu RG, desenvolvido em parceria com a Bicha da Justiça, empresa de assessoria jurídica e educação sobre direitos LGBTQIA+.

A partir dessa colaboração, o GPA oferece suporte para que dez profissionais que se autodeclaram transgêneros ou travestis realizem a retificação dos documentos de acordo com o gênero que se identificam. 

“É o nosso papel, educar constantemente os nossos colaboradores, para que tratem todo o tipo de diversidade com o respeito devido, mas para que profissionais trans também saibam quais são seus direitos”, diz Erika Petri, diretora de RH, Sustentabilidade e Comunicação Corporativa. “Apoiar o Orgulho do meu RG faz parte de uma estratégia macro, com diversos pilares relacionados à diversidade. Para cada um deles, a gente tem ações, métricas específicas, grupos de afinidade, embaixadores… E com as pessoas LGBTQIA+ não é diferente.”

Alice Rolim
Alice Rolim, operadora de caixa do GPA: “Quando comecei a transição, pedi para mudarem a forma como me chamavam, e a retificação dos documentos é algo que fortalece essa vontade. Nunca ninguém me desrespeitou”. (Grupo Pão de Açúcar/Divulgação)

O GPA descobriu a Bicha da Justiça justamente em um dos fóruns que promove. E quis fazer uma parceria imediatamente. “A retificação do documento de uma pessoa trans é algo tão importante, é quase que dar para ela o direito de assumir quem é. Mas também é uma oportunidade de a gente discutir o tema aqui dentro. Quando trazemos um tema como esse e anunciamos na reunião da diretoria que vamos fazer a retificação para esse público, é uma brecha que reafirma nosso compromisso com a diversidade e que apoiamos a pauta LGBTQIA+. Foi um caminho para trazer o tema à tona não apenas para profissionais trans que estão se beneficiando da iniciativa, mas para todos os colaboradores do grupo”, diz a executiva. 

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Uma das beneficiadas pelo programa é a operadora de caixa Alice Rolim, que está há um ano no GPA, em São Paulo. Ainda sem experiência, aos 19 anos, conseguiu no ano passado o emprego de aprendiz. “Quando comecei a transição, pedi para mudarem a forma como me chamavam, e a retificação dos documentos é algo que fortalece essa vontade. Nunca ninguém me desrespeitou, sempre fui muito bem tratada na empresa. Me sinto à vontade”, diz Alice. 

Uma das alegrias dessa profissional trans foi quando descobriu a política da empresa para uso do banheiro. Quando foi até o local, ficou na dúvida se poderia entrar no feminino, e um segurança se aproximou e a tranquilizou, dizendo que poderia entrar no que ela quisesse. “A partir daí, senti uma segurança muito grande em relação ao meu local de trabalho, tive a confiança de que as pessoas me apoiavam nesse quesito.”

A felicidade por poder usar o banheiro certo. A tranquilidade de que não vai ser molestada por sua opção de gênero. Algo tão impensável para um cisgênero e tão significativo para profissionais trans… Isso demonstra o quanto a questão da empregabilidade dessas pessoas ainda tem a evoluir nas empresas. E na sociedade brasileira.

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Este texto faz parte da edição 91 (abril/maio) da VOCÊ RH. Clique aqui para conferir os outros conteúdos da revista impressa.

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