m 2020, a Justiça do Trabalho de Minas Gerais condenou o proprietário de uma loja a indenizar uma funcionária em R$ 50 mil. Como condição para que ela recebesse um bônus mensal de R$ 200, a mulher era obrigada a apresentar no escritório um papel com carimbo de uma academia de ginástica. Era um atestado de que tinha perdido peso. Em uma das provas apresentadas à Justiça, um bilhete escrito pelo ex-patrão dizia: “Quero ver o resultado no final do próximo mês, tá? Estou de olho. Neste mês não vi diferença”.
Esse tipo de atitude tem nome: é gordofobia. Uma aversão a corpos gordos que cria obstáculos para que pessoas com esse perfil avancem na carreira. Ou até para que comecem sua trajetória profissional. Em 2011, numa entrevista para Marília Gabriela, o empresário Roberto Justus disse que contratar pessoas obesas é um erro. Segundo ele, a forma física do candidato, nesse caso, seria uma evidência de falta de autocontrole – e até de inteligência. Aparentemente, muitos líderes concordam com essa declaração inaceitável. E nem disfarçam tanto assim.
Um estudo realizado em 2009 pela plataforma de empregos Catho mostrou que 69% dos presidentes e diretores de empresas manifestaram alguma restrição para contratar obesos. E não parece ter havido avanços de lá para cá. No ano passado, o Mapeamento da Gordofobia no Brasil revelou que 50% dos indivíduos gordos sofrem com a falta de cadeiras e mobiliários adequados ao seu corpo no trabalho (ver quadro). Além disso, 56% relatam constrangimento com a falta de uniformes de seu tamanho.
Os números são ultrajantes, sobretudo considerando-se que a maior parte dos brasileiros está acima do peso ideal pelos critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a pesquisa PNS, realizada pelo Ministério da Saúde em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, 60% da população tem sobrepeso; e 27%, obesidade mesmo.
Qual é a diferença? Uma pessoa é identificada como obesa quando seu Índice de Massa Corporal (IMC) é maior ou igual a 30 kg/m² (sendo que a faixa de peso considerada normal varia entre 18,5 e 24,9 kg/m²). Os indivíduos com IMC entre 25 e 29,9 kg/m² têm sobrepeso (estão acima do peso ideal, mas não chegam a ser gordos). Para saber o seu IMC, há diversas calculadoras na internet, mas é basicamente isto: elas dividem seu peso pela sua altura ao quadrado. Um homem com 1,75 m de altura e 80 kg está com sobrepeso. Para a mesma altura, se ele estiver com 95 kg, já está no quadro de obesidade. E tem mais riscos de ser discriminado no escritório. Até porque a questão nem chega a ser discutida.
É o que aponta Carolina Ignarra, fundadora e CEO do Grupo Talento Incluir, que atende a demandas de pautas identitárias: “O mercado vem pedindo faz tempo para a gente falar de mais temas, cada causa é profunda e tem questões que precisam ser estudadas. Mas, se você me perguntar se eu conheço algum programa corporativo voltado para corpos gordos, a resposta é não”.
Vieses conscientes e inconscientes
As propagandas mudaram e os corpos gordos até estão presentes nos anúncios dos produtos. Da porta para dentro, porém, o assunto é praticamente invisível. Para Cris Kerr, CEO da CKZ Diversidade, isso acontece porque esses indivíduos nem sequer são contratados. “Na nossa infância, ouvíamos na escola que os alunos gordos eram folgados e desleixados. Virou um estereótipo, que formou um viés inconsciente: é um indivíduo engraçado e desastrado, que não serve para trabalhar comigo.”
Em muitos casos, como revelou a pesquisa da Catho, trata-se de uma percepção consciente mesmo. Kerr se recorda de um executivo que relatou não gostar de lidar com obesos: “Quando eu pedi para resgatar o que ele associava à obesidade, ele se lembrou de ser um menino gordinho e ouvir da mãe que, se continuasse com aquele peso, seria um fracassado”.
Em uma de suas dinâmicas voltadas para viés inconsciente, a CKZ Diversidade apresenta a imagem de um homem obeso e outro magro, e pergunta quem traz uma primeira impressão mais positiva. Segundo Kerr, 99% dos participantes escolhem o esbelto. “No treinamento, a gente aponta que, se o recrutador não tiver clareza do seu preconceito, estará deixando de contratar profissionais talentosos por colocar o corpo em primeiro lugar, sem olhar para a competência técnica e comportamental do candidato”, afirma.
No entanto, não basta contratar – é preciso incluir. Em um trabalho com uma empresa de varejo, Kerr propôs um programa de trainee só para mulheres, de olho na baixa presença delas em cargos de gestão e liderança naquele local. As colaboradoras foram escolhidas levando-se em conta a interseccionalidade, incluindo pessoas gordas. “O primeiro desafio foi que a aprovada não passava na catraca”, recorda-se. Quando contou essa história para um grupo majoritariamente masculino, em um treinamento, a consultora ouviu de um CEO: “Vocês falaram para ela fazer um regime, né?”. E a plateia caiu na risada.
A pressão estética é maior no caso das mulheres. “A gente vê homens gordos em posições altas no mercado de trabalho. Embora eles possam ouvir piadas e passar por algum constrangimento, a cobrança por um corpo perfeito não é tão grande sobre eles”, afirma Gabriele Menezes, psicóloga clínica especialista em transtornos alimentares e de imagem, ativista na luta antigordofobia. Se, além de obesa, a colaboradora for negra, o preconceito é ainda pior.
Obesidade como doença
Na visão da psicóloga, a gordofobia recebe pouca atenção das corporações por ser uma condição mutável e esbarrar no conceito de saúde. “A pessoa preta vai continuar sendo preta, a com deficiência raramente vai mudar a sua condição. Já as pessoas gordas são vistas como doentes que poderiam emagrecer”, explica. As corporações, assim, evitariam abraçar a causa por receio de endossar o que consideram insalubre. “Reconhecer a existência dos corpos gordos não é o mesmo que romantizar a obesidade, e sim dar oportunidade para todos os funcionários se sentirem confortáveis no ambiente de trabalho.”
Além disso, tornar o espaço corporativo agradável é interessante não só para quem chega, mas para quem já faz parte do quadro de funcionários. “Se alguém entrou na empresa magro e depois engordou, ele não serve mais?”, provoca Menezes.
A cultura do ativismo fala muito sobre a importância de ter aliados. Segundo a psicóloga, porém, é complicado encontrar parceiros para a gordofobia, exceto entre aqueles que já sofrem essa discriminação na pele. Até hoje, os convites corporativos que Menezes recebeu resumem-se a palestras na semana de 10 de setembro, quando é celebrado o Dia da Luta Antigordofobia. A ativista lamenta que as iniciativas sejam tão pontuais e reúnam até mesmo programas de emagrecimento.
O que diz a lei
Discriminar um funcionário pelo peso é não apenas desrespeitoso como também criminoso. A advogada Mariana Oliveira, ativista do projeto Gorda na Lei, dedicado à luta antigordofobia, afirma que o ato pode ser enquadrado nos crimes contra a honra, especificamente a injúria. Na esfera civil, cabem ainda ações por danos morais, assim como aquelas que se denominam “obrigação de fazer” – nas quais alguém deve se retratar – e questões ligadas ao direito de imagem. No âmbito trabalhista, o preconceito é considerado assédio moral.
Processos relacionados à gordofobia são cada vez mais numerosos no Brasil. Segundo um levantamento da startup Data Lawyer com documentos não sigilosos, em 2014 havia uma ação com esse tema. Em 2016, eram cinco e, em 2022, o número saltou para 203. De 2014 para cá, no total, são 721 processos, a maioria na esfera do trabalho. “Com base nos relatos que recebemos, temos certeza de que o número é muito maior. No entanto, os funcionários têm dificuldade para juntar provas e arrolar testemunhas, porque as pessoas têm medo de perder o emprego”, afirma Mariana Oliveira.
Em 2022, uma ótica paulista foi sentenciada a pagar R$ 5 mil em indenização a uma mulher que alegou ter se submetido a uma cirurgia bariátrica por causa das humilhações de um gerente. Segundo ela, mesmo com a operação, as ofensas não pararam. Em outro processo, que tramitou no Rio Grande do Norte, a funcionária de uma agência bancária ganhou R$ 45 mil por danos morais. Por quê? Um superintendente do banco falou que a trabalhadora não tinha perfil compatível com o local e que seu sobrepeso não combinava com a beleza e o ambiente da agência.
O assédio moral diz respeito a ações de constrangimento explícitas como essas. Porém, na maioria das vezes, a discriminação não é tão descarada. Ela pode vir disfarçada de piadas e apelidos “carinhosos”. Às vezes, o próprio colaborador faz piada consigo, numa tentativa de gerar pertencimento e camuflar o incômodo pela implicância alheia. As consultorias de diversidade batem na tecla de que as supostas brincadeiras são, na realidade, bullying.
Além dos comentários e olhares tortos – afinal, o preconceito muitas vezes não é expresso em palavras –, existem questões estruturais relacionadas ao trabalho. Rayane Souza, do Gorda na Lei, enumera algumas situações discriminatórias. “Nós ouvimos relatos sobre uniformes que causam constrangimento e mobiliários, catracas e banheiros inadequados”, diz ela. “As pessoas ouvem sugestões de seus gestores para perder peso, sob o disfarce da preocupação com o seu bem-estar, e são colocadas em backstage, para não ter contato direto com o cliente.”
Para Souza, a inclusão de pessoas gordas no mercado de trabalho ultrapassa a esfera judicial. “Quando você fala em inclusão, pensa no combate ao capacitismo, ao racismo e à homofobia. Mas as pessoas gordas ainda não estão colocadas nessa linha de discussão. A nossa luta é fazer com que esse olhar exista também para a nossa causa.”
Trata-se, enfim, de um problema que afeta não só o ambiente corporativo, mas todos os locais habitados por aquele corpo fora do padrão. E que deve ser encarado com a mesma atenção com que outros temas de diversidade, felizmente, já vêm sendo tratados. Afinal de contas, a eficiência do profissional não pode ser medida pelo tamanho da cadeira em que ele se senta. Há espaço para todos.