Carreiras líquidas: adaptabilidade é o novo mantra da gestão de pessoas
A metáfora de ser como água define a necessidade de desenvolver competências de acordo com o contexto. Veja os 5 passos para motivar a fluidez
e water, my friend”, disse o personagem de Bruce Lee em Longstreet, série de 1971. A frase do célebre artista marcial ressurgiu no mundo corporativo de 2023 como síntese da competência básica para a gestão de pessoas, de negócios e de si mesmo em tempos instáveis: seja água. “Coloque água em um copo, ela se torna o copo. Coloque água em um bule, ela se torna o bule. A água pode fluir ou rastejar ou pingar ou cair”, disse Lee.
Ser um profissional líquido é adquirir outras habilidades de acordo com o que pede o contexto. Daí deriva também a carreira líquida, que traz a ideia de algo flexível e adaptável — bem distante, aliás, da própria definição do termo “carreira”, que significava, no original em latim, um caminho pré-traçado para carros. Se antes essa imagem correspondia ao que era a vida profissional, quase sempre uma trajetória linear e ascendente na mesma empresa, agora a definição não dá mais conta da multiplicidade do mundo do trabalho.
Não só as pessoas ficam menos tempo nas companhias, deixando de desenvolver uma trajetória contínua, como as funções e habilidades se tornam obsoletas em bem menos tempo (veja o quadro). A busca por organizações mais enxutas e eficientes também diminui as oportunidades de evolução para cargos mais altos, tradicional marca de sucesso e de crescimento profissional.
A inquietação não é nova. Na década de 1970, Douglas T. Hall, pesquisador estadunidense, desenvolvia o conceito de “carreira proteana”, inspirado no mito de Proteu, deus grego que tinha a capacidade de se transformar sempre que necessário para desafiar os oponentes e ser tão maleável quanto a água. Já naquela época, o estudioso percebeu que as mudanças no mercado de trabalho, cada vez mais competitivo e tecnológico, exigiriam uma habilidade parecida. “O profissional e as organizações precisam se transformar, assim como Proteu, à medida que veem mudanças no contexto. As competências e habilidades necessárias vão se transformando”, diz Lina Nakata, professora do MBA em gestão de negócios da FIA Business School.
Hoje, essa necessidade é mais intensa por causa da transformação tecnológica, diz Adriano Almeida, cofundador e diretor de negócios da Alura, plataforma de educação em tecnologia. Um exemplo disso seria o profissional de RH que precisa alinhar práticas com a equipe de TI e entender sobre análise de dados. O catalisador desse processo, diz Adriano, são as habilidades digitais, que a cada dia passam a ser necessárias em mais áreas. “Na carreira líquida, o profissional não tem mais um papel claro, porque não dá para prever tudo que ele vai precisar fazer no dia a dia”, afirma.
Mas transformações de mentalidade como essa são lentas e não acontecem na mesma velocidade entre diferentes pessoas e áreas de uma empresa. É por isso que conceitos antigos de carreira convivem com novos, e os líderes devem estar atentos a isso. “Muitas pessoas ainda têm a expectativa de que as empresas deem respostas para sua trajetória, que direcionem seu crescimento”, diz Ricardo Ruzzarin, cofundador da consultoria Resolution. Mas é preciso dizer: adotar o discurso de que cada um deve ser o protagonista da própria carreira sem oferecer recursos para que isso seja possível está entre os principais erros das companhias na transição da gestão para formatos modernos.
Carreira como experiência
Para Rafaella Lopes, diretora de RH da farmacêutica AstraZeneca, a tendência é dar mais ênfase à experiência de trabalho, em vez do cargo, do status e da hierarquia. E a executiva percebe essa mudança de visão nos próprios funcionários. “Muitos me procuram mais para perguntar como podem desenvolver determinada habilidade do que para saber como se tornar gestor”, afirma Rafaella.
Em 2018, a AstraZeneca lançou no Brasil o Plano 100, uma plataforma online global que permite que os funcionários se candidatem para participar de projetos em diferentes países e áreas, como o lançamento de um novo produto na Europa ou nos Estados Unidos ou um trabalho multidisciplinar de diversidade. Em geral, os selecionados dedicam de 20% a 30% do tempo à iniciativa, combinando o período com o gestor. A participação pode ser feita de forma remota, e o programa envolve feedbacks formais e o registro do que cada um aprendeu. “Para o funcionário, é uma forma de se expor, desenvolver uma habilidade diferente em outro segmento e ter uma experiência de contribuição internacional”, diz Rafaella.
Para a empresa, a vantagem é contar com profissionais mais afinados com os desafios do negócio. Em 2022, oito brasileiros se envolveram em projetos na plataforma. Agora a ideia é ampliar o número de participantes, com maior divulgação das oportunidades e engajamento dos líderes.
Outra iniciativa é o job rotation, que permite que funcionários saiam de sua função temporariamente para experimentar a rotina em outro departamento, e depois voltem para a ocupação de origem. Em média, são três participantes por mês. “O profissional nunca volta igual, porque carrega todo o aprendizado que teve”, afirma Rafaella. Por vezes, o programa acaba resultando em movimentações laterais, quando o funcionário gosta tanto da nova área que decide ficar por lá se existe a possibilidade.
Para a prática funcionar, a participação da liderança é fundamental, já que é por meio das conversas de desenvolvimento com os gestores que os potenciais candidatos para o job rotation são identificados. “Quando há uma posição, procuramos nesse repositório quem gostaria de participar”, diz Rafaella. Segundo ela, um dos pontos mais positivos da prática é o fato de que as pessoas se sentem muito mais confortáveis em errar e aprender quando sabem que têm sua função original garantida.
Falta conscientização
Outro entrave à adoção da carreira líquida é a cultura do líder possessivo com a equipe. “Uma parte da liderança quer segurar os melhores talentos na equipe, por vezes fazendo promessas de promoção que não são cumpridas”, afirma Lina, professora da FIA. Isso gera frustração — e os profissionais se sentem limitados ou enganados.
Essa questão leva a outro ponto: muitas vezes, o que é cobrado nas metas das lideranças não corresponde ao discurso das carreiras líquidas. Um gestor que “perde” seus talentos para outras áreas pode ter sua avaliação comprometida, por exemplo. Além disso, muitas ferramentas que o RH usa, como a avaliação de desempenho e o programa de desenvolvimento, ainda estão ancoradas em conceitos antigos, como plano para que o profissional possa “subir” em sua área e competências desejadas para a liderança de determinado departamento. Não sobra espaço para que o funcionário seja dono de sua carreira e explore diferentes segmentos e habilidades. “O RH surgiu no modelo de comando e controle e sempre teve essa visão de acompanhar o ponto, o comportamento das pessoas, os números”, diz Ricardo, da Resolution. Para ele, a área de gestão de pessoas precisa se transformar junto com as ideias sobre carreira e ser uma comunicadora da mudança, garantindo que ela seja bem assimilada. Caso contrário, mesmo que tanto a empresa quanto as pessoas queiram uma carreira mais flexível, dificilmente essa mudança vai acontecer.
Foi isso que Carolina Prado, diretora de RH da Privalia, outlet online de roupas, percebeu ao chegar à empresa, em 2018. Na época, ela fez um processo de escuta dos cerca de 400 funcionários para entender as expectativas e as principais queixas. O que ela viu foi que muitos esperavam poder se movimentar na empresa como forma de testar o trabalho em outras áreas de atuação. Quando percebiam que não havia essa oportunidade, se frustravam — e alguns pediam demissão para encontrar em outras companhias o que buscavam.
Essa dinâmica era especialmente perceptível em jovens no início da vida profissional e que ainda tinham dúvidas sobre o que poderiam fazer no trabalho. “As pessoas têm uma formação acadêmica, e o mercado acha que elas precisam seguir naquela área até o fim, mas isso não necessariamente é verdade”, afirma Carolina.
Para incentivar mais movimentações laterais, a empresa passou a oferecer, em 2019, workshops sobre o tema, falando também das oportunidades internas. Depois de uma pausa na pandemia, em 2022 os eventos foram retomados de forma híbrida: presencial e online. Um deles é o Insights Privalia, no qual uma área apresenta um pouco de sua forma de trabalhar e sua estrutura para outros funcionários. O objetivo é estimular a troca de experiências, inclusive com job rotations. Segundo Carolina, 95% das vagas são divulgadas internamente antes de ir ao mercado e, em 2022, cerca de 10% das movimentações internas para novas áreas tiveram como finalidade o desenvolvimento e a retenção. Outras oportunidades para entrar em contato com diferentes áreas é participar de um projeto interdisciplinar ou substituir profissionais de licença.
Já no workshop de carreira, pessoas que passaram por diferentes áreas na Privalia, inclusive diretores, compartilham suas trajetórias. Ao final da oficina, os participantes fazem junto com o RH um mapeamento de como guiar a carreira de forma mais autônoma e fora de uma trilha pré-concebida. Cada workshop tem a participação de cerca de 25 pessoas — no ano passado, foram oito edições. A ideia, agora, é fazer pelo menos dez ao ano e aumentar a quantidade de participantes.
O novo treinamento
Adquirir habilidades que não estão previstas na função ou na própria área de atuação requer também uma mudança na qualificação dos profissionais. E o principal ponto aqui é a personalização. “Precisamos trabalhar a mentalidade de fluidez e ver que as pessoas podem aprender de múltiplas formas, e não só em uma sala de aula”, diz Ricardo, da Resolution.
Na AstraZeneca, uma forma de democratizar a aprendizagem de alto desempenho é o mentoring aberto a qualquer interessado, e não só a um grupo de elite. Os profissionais podem se cadastrar no programa tanto como mentores quanto como mentorados. A plataforma permite selecionar profissionais de acordo com as habilidades e experiências desejadas ou então escolher funcionários específicos. Os participantes recebem um kit com orientações para o processo e podem preencher avaliações para cada encontro. Em 2022, foram 38 mentorias formais.
A prática é bem-vinda, inclusive, como forma de enfrentar a escassez de talentos qualificados. Quando a empresa prepara dentro de casa pessoas com múltiplas habilidades, capazes de exercer diferentes funções, a busca no mercado tende a ser mais estratégica do que reativa, sobretudo em tecnologia. Apesar de esse segmento ser um dos mais críticos para as companhias, apenas 26% delas incentivam ativamente o desenvolvimento nessa área entre funcionários que não têm formação no setor, de acordo com uma pesquisa da plataforma de educação Alura em parceria com a plataforma LandTech. Por trás dessa defasagem reside o medo da perda de talentos, diz Adriano, cofundador da Alura. “Mas isso é sabotar o negócio”, diz.
Afinal, privar as pessoas de agregar habilidades que vão além de seu momento de carreira significa abrir mão de profissionais e, principalmente, ficar atrás na competitividade. Porque o mundo muda cada vez mais rápido: funcionários e empresas precisam aprender a se reinventar. Como dizia o filósofo polonês Zygmunt Bauman, vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.
Esta reportagem faz parte da edição 84 (fevereiro/março) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante