Como as empresas podem acolher profissionais com filhos
Com o retorno presencial aos escritórios, profissionais com filhos repensam a rotina e até a decisão de continuar nas empresas
trabalho remoto trouxe para os pais a possibilidade de organizar uma rotina mais próxima dos filhos. Apesar das dificuldades, principalmente para as mães, o modelo se mostrou adequado para esse público. Um estudo da consultoria Talenses com 1.120 mulheres apontou que 94% acreditam que o home office veio para ficar, e 75% delas preferem o modelo híbrido. “Esses pais e essas mães conquistaram uma flexibilidade, uma presença na construção de vínculo com os filhos, que não estão dispostos a perder”, afirma Michelle Levy Terni, sócia remotoda consultoria Filhos no Currículo, parceira da Talenses na pesquisa. “Muitos relataram a sensação de relacionamento fortalecido, que faz bem para o desenvolvimento da criança e também para o adulto, inclusive como profissional.”
Quando as empresas não incentivam o equilíbrio entre as atividades pessoais e do trabalho, as mulheres precisam fazer mais renúncias, o que pode comprometer, inclusive, a saúde mental delas. “É que ser saudável emocionalmente é trabalhoso: é preciso tempo para movimentar-se, cuidar da alimentação, dormir de maneira satisfatória, desfrutar das relações pessoais”, afirma Desirée Cassado, psicoterapeuta e professora da The School of Life. “E as mulheres com filhos, especialmente, sofrem sobrecarga e costumam dedicar os dias a cumprir as tarefas do emprego e da casa.”
O estudo também mostrou que mulheres sem filhos e mães que têm posição de liderança e contam com uma rede de ajuda tiveram mais oportunidades de carreira do que as demais, indicando que há uma parcela de profissionais precisando de mais apoio das empresas. “Nos meus atendimentos clínicos, vejo que há pouco espaço nas corporações para discussões reais sobre como conciliar demandas familiares com trabalho”, afirma Desirée. “Quando há acolhimento corporativo, meus clientes relatam muito mais satisfação com o trabalho. Mais satisfeitos, eles se sentem ainda mais engajados e leais à equipe e aos projetos.”
Remote first
Um modelo de trabalho capaz de auxiliar mães e pais a não perderem a presença familiar conquistada no home office é o remote first, modalidade híbrida em que a companhia prioriza o trabalho remoto, mas mantém um escritório para encontros presenciais esporádicos.
A General Mills, multinacional do setor alimentício, começou em janeiro de 2022 a testar esse modelo. Para chegar à decisão, a empresa realizou uma pesquisa com os funcionários para entender qual seria a melhor alternativa para colocar em prática neste momento. Cerca de 90% das pessoas disseram que gostariam de continuar trabalhando remotamente e comparecendo ao escritório em alguns dias. “Foi um quebra-cabeça montar um formato adequado que contemplasse essas expectativas sem perder a cultura já criada coletivamente, ao longo dos anos, no ambiente físico”, afirma Hugo Moraes, diretor de RH da General Mills no Brasil.
A partir dessa investigação, a companhia optou por se declarar uma empresa “essencialmente virtual”, definindo que os momentos para estar junto no escritório seriam especiais, com um propósito maior apelidado de quatro “Cs”: conectar, criar, celebrar e colaborar. “A gente fez um trabalho com as diretorias para entender em quais momentos as pessoas geralmente seriam convocadas para o presencial”, afirma Hugo. “E descobrimos que, na maioria dos casos, os funcionários precisariam ir ao escritório de uma a três vezes por mês, e não por semana.” Esse dado motivou reflexões sobre a real necessidade do controle da jornada e de ponto, já que a demanda era por maior flexibilidade, trabalhando em um horário que fizesse sentido para cada um.
Além do fim do ponto eletrônico para funções que permitem a jornada 100% flexível, algumas medidas adotadas ao longo da pandemia permaneceram, como a orientação para evitar reuniões no período de almoço e o bloqueio de agenda para os encontros virtuais antes das 8 e após as 17 horas. Esse cuidado em relação aos horários é uma prática que os especialistas incentivam para empresas que queiram acolher quem tem filhos, pois é nesses períodos que antecedem e sucedem a jornada clássica que as pessoas geralmente precisam de uma pausa para, por exemplo, levar ou buscar as crianças na escola ou fazer as refeições juntas.
Outras práticas da General Mills que são amigáveis a esse público são a licença-maternidade de seis meses e a licença-paternidade de 20 dias. A empresa também possui um programa de parentalidade chamado Bem Nascer, com uma equipe dedicada a ajudar na marcação de exames e consultas médicas pelo plano de saúde. “A gente entende que é importante manter um diálogo constante para compreender o surgimento de novas demandas e a adaptação aos novos modelos de trabalho. Em março, faremos uma nova conversa com todos sobre isso, para acompanhar o andamento”, afirma Hugo.
Com a crise sanitária, muitas mães encontraram dificuldade para permanecer trabalhando. Em muitos casos, o motivo não foi falta de disponibilidade delas, mas, sim, ausência de flexibilidade das empresas ou até preconceito, já que a maternidade é falsamente percebida como um desacelerador da produtividade. “A gente analisou um estudo que mostrou que somente 50% das mães conseguem continuar no ambiente profissional, por causa de diversas questões, entre elas não ter quem cuide do filho ou mesmo para poder estar presentes em casa nos anos iniciais da criança”, diz Ana Paula Tarcia, diretora de pessoas e cultura do Banco BV. “Então decidimos fazer algo que trouxesse essa mulher de volta para o ambiente corporativo.”
Mentoria
Em 2021, o BV lançou um programa de contratação exclusivo para mães que estavam fora do mercado de trabalho. As profissionais contratadas receberam mentoria de carreira conduzida pela consultoria Filhos no Currículo. E a jornada de desenvolvimento segue para as candidatas que não foram aprovadas no processo seletivo para as 12 vagas: todas continuam com a oportunidade de participar de palestras e workshops sobre recolocação no mercado e qualificação para outras oportunidades.
Além do programa, o banco tem iniciativas de acompanhamento domiciliar para gestantes de risco, orientação nutricional, sala de lactação, jornada flexível e plano de desenvolvimento e mentoria de carreira para esse público.
Isonomia parental
Criar condições para que a divisão de tarefas nos cuidados com a criança aconteça é também uma responsabilidade corporativa. Por isso, as empresas estão aumentando ou igualando as licenças-paternidade e maternidade, além de incluir o pai em programas de benefícios e de conscientização historicamente destinados às mulheres. O BV ampliou o período de licença parental para funcionários que tiverem filhos ou adotarem. Para mães e casais homoafetivos, o tempo pode ser de até 180 dias; para os pais, de 90 dias, podendo ser utilizado em um prazo de até um ano a partir da chegada da criança.
Atualmente, a legislação brasileira prevê 120 dias de licença para a mãe e cinco dias para o pai. Mas está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei pedindo a alteração para que ambos tenham direito a 180 dias. A proposta surge como uma forma de reforçar o vínculo socioafetivo com a criança, mas também a igualdade de gênero nos cuidados. Na Espanha, desde o início de 2021, pais e mães têm direito ao mesmo período de licença, de 16 semanas após o parto. “Essa questão de trazer protagonismo para a paternidade passa por trabalhar a cultura, mas também por estabelecer políticas formais”, afirma Michelle, sócia da consultoria Filhos no Currículo. Para ela, existe uma mudança de entendimento importante nesse processo, que é deixar para trás a mentalidade do “eu ajudo” e passar a utilizar a do “eu cuido”. Para isso, as lideranças precisam também ser treinadas, evitando constranger os homens que optam pelo prazo estendido da licença. “É necessário evitar, por exemplo, piadinhas como a famosa frase ‘Vai ficar de babá hoje?’”, diz. “Isso traz a ideia de que filho é cuidado da mulher, e não do pai.”
Deixar claro que usufruir desse momento com o filho é uma opção benéfica, e não um risco à carreira, também é fundamental. “O que mais preocupou na pesquisa foi o receio das pessoas de contarem que vão ter filhos e precisarão se ausentar”, afirma Isis Borge, diretora associada da consultoria Talenses. “Há empresas com licença-paternidade estendida, mas o que vemos são muitos homens não tirando esse tempo por medo de se ausentar e perder o espaço. Por isso que a gente sempre encoraja que homens em cargos de gestão tirem a licença, para dar o exemplo.”
5 práticas para acolher funcionários com filhos
Com a rotina transformada na pandemia, profissionais repensam a carreira e até a decisão de continuar em empresas inflexíveis. Saiba como acolher esse público
1. Respeite horários
Estabelecer como política da empresa a não realização de reuniões em determinados horários, como no fim do expediente, beneficia todos os públicos, especialmente pais e mães. Às vezes, apenas a recomendação para evitar encontros virtuais nesses períodos não basta.
2. Seja exemplo
Algumas empresas têm licença-paternidade estendida, mas muitos profissionais não utilizam o benefício, por receio de serem mal vistos ou perderem oportunidades de crescimento na companhia. É fundamental treinar as lideranças sobre parentalidade e equidade de gênero e orientar que os gestores aproveitem o benefício.
3. Avalie a entrega, não a jornada
Para que mães e pais tenham flexibilidade para cumprir suas demandas, é necessário que os líderes repensem a gestão por controle de jornada. O ideal é medir as entregas, independentemente dos horários em que foram cumpridas.
4. Dê tempo
Assim como aconteceu no início da pandemia, funcionários com filhos precisam de um período de adaptação à nova rotina, especialmente quem tem criança em casa. Crie grupos de escuta e, se possível, ofereça um canal de atendimento psicológico às equipes.
5. Acompanhe
Os novos modelos de trabalho ainda estão em construção. É importante promover a escuta ativa e empática para saber o que está funcionando e o que é necessário mudar.
Esta reportagem faz parte da edição 78 (fevereiro/março) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante