IA no RH: A era dos recursos híbridos
Cada pessoa e cada bot na cadeira certa – esse é o futuro nas empresas em que humanos e inteligência artificial convivem para buscar a melhor performance.

“OPEN TO WORK: Assistente de Segurança Cibernética Industrial.
Atuo diretamente na proteção de sistemas industriais sensíveis. Com profundo conhecimento das regulamentações do setor elétrico e industrial, ofereço suporte completo. Estou disponível para ajudar a sua empresa a implementar e melhorar a segurança cibernética. Vamos conectar!”
Atenção, RHs! Esse é o perfil de um colaborador com competências e habilidades altamente demandadas. Falta gente no Brasil com a especialização dele – o gap estimado é de 60 mil pessoas. Conhecimento de mercado? Esse candidato sabe tudo sobre ataques de hackers que aconteceram nos últimos 42 anos, no Brasil e no mundo. E ainda por cima é muito ágil – com ele, uma tarefa geralmente feita em 40 minutos leva apenas 4.
Que tal? Você contrataria esse candidato?
Desculpe, faltou uma informação importante: ele não é uma pessoa. É um bot.
E agora? Você contrataria esse candidato?
O texto acima não está postado no LinkedIn, mas é verdadeiro. É uma versão resumida do perfil do SAFER, um bot criado pela empresa TI Safe. E, sim, o SAFER está #opentowork. O bot foi criado inicialmente como ferramenta de apoio para os analistas da TI Safe, que cuidam da segurança cibernética de grandes clientes industriais, como siderúrgicas e empresas de energia. Mas agora o SAFER está à venda para organizações que queiram um “consultor” para questões de segurança. “Às vezes a empresa já tem uma equipe interna para isso, mas precisa de um ajudante. Esse é o perfil dos clientes”, diz Thiago Branquinho, cofundador e CTO da TI Safe.
“Comprar” um colaborador bot… quão estranho isso soa para você? Pois comece a se acostumar, porque estamos entrando na era dos recursos híbridos – em que o RH precisa gerenciar ambientes populados por pessoas e pela IA. Os bots estão chegando às empresas com muita velocidade e ganhando novas habilidades e escopos. Alguns até já têm nome próprio. E há gente pensando em colocá-los no organograma da companhia.

O bot na baia ao lado
Na BRF, Tina, Iago, Sam, Cristóvão, Eva e Flor são soluções de IA com funções especializadas dentro da empresa. Tina ajuda o time de vendedores. Quando eles chegam a um cliente, Tina já entende onde estão por geolocalização, e sugere ao vendedor, via WhatsApp ou via app, uma oferta a ser feita. Iago dá apoio técnico aos veterinários extensionistas, profissionais que visitam fazendas: tira dúvidas sobre manejo de frango, de suínos, sobre protocolos. Sam é a assistente da área de suprimentos: ajuda na gestão de estoque e abastecimento, por exemplo. Cristóvão apoia os mais de 7 mil motoristas da operação logística da BRF, fazendo avaliações de viagens, monitorando cargas e viabilizando solicitações de suporte.
Esses são chatbots, ou seja, bots que conversam com os colaboradores. Mas outros dois estão mais avançados, a caminho de se tornarem agentes de IA – bots que podem fazer análises e tomar decisões sozinhos. Eva é uma solução para solicitações de TI dentro da empresa, como desbloquear usuário, liberar login, entre outros. A ideia é não só ela interagir com os colaboradores, mas também realizar os procedimentos necessários, sem depender de um analista de TI.
O mesmo vale para a Flor, assistente de todos os colaboradores da BRF para questões de RH. Além de tirar dúvidas, a Flor é capaz de executar processos que antes viravam tarefa operacional para Business Partners, como agendar férias, emitir informes de rendimentos, holerites. Hoje a Flor faz 200 mil atendimentos por mês, algo que seria impossível o time de RH realizar. Para o futuro, ela vai também integrar tarefas de sistemas diferentes. Um líder da BRF vai poder, por exemplo, transferir um funcionário para outra área apenas conversando com a Flor, via WhatsApp. Sem precisar imputar informação nenhuma em um sistema específico.
Todas essas novidades estão sendo lideradas por Alessandro Bonorino, VP de Gente, Gestão e Transformação Digital da BRF. Em 2018 ele começou uma revolução digital na companhia, aproveitando a experiência de uma longa carreira prévia na IBM. E começou pelo próprio RH. “Pilotar, entender qual o problema que estamos resolvendo, ter suporte 24×7”, diz Alessandro. “Para mim, isso também era a base do meu papel como CHRO, de empurrar a transformação digital na companhia como um todo. Então eu queria usar um exemplo na área de gente para mostrar que as outras áreas poderiam fazer a transformação digital também.”
Em 2018, 70% do trabalho do time de RH da BRF era dedicado a serviços administrativos, e apenas 30% ao desenvolvimento de pessoas. Em 2024, a proporção está invertida – os times de Gente gastam 70% do tempo da área com processos estratégicos. Graças à introdução de tecnologia.
A Unilever segue a mesma estratégia. Hoje, 50% do RH da companhia conta com algum tipo de IA para automatização e digitalização, em um movimento iniciado em 2021. Assim como a BRF tem a Flor, a Unilever tem a Una, uma plataforma de IA que tira dúvidas sobre benefícios e políticas, por exemplo, e auxilia na solicitação de férias e demonstrativo de pagamento, entre outras funções. Além disso, a folha de pagamento dos 11,4 mil colaboradores da companhia é executada agora por um bot, com uma precisão de praticamente 100%. “Os principais resultados que observamos são funcionários mais empoderados e autônomos para buscarem soluções para suas questões do dia a dia; nosso RH se tornou uma área mais eficiente e menos burocrática”, afirma Petr Hon, diretor de People Experience da Unilever Brasil.

Assim como Alessandro Bonorino, Petr também acredita que a digitalização do RH pode servir como exemplo dentro da empresa – mas para o próprio RH, ao criar uma nova cultura e uma mentalidade tecnológica na área. Não à toa. “Medo de perder o emprego” foi apontado como principal fator limitante de adoção de IA em uma pesquisa realizada pela empresa Flash e pela plataforma Think Work com 303 profissionais de recursos humanos entrevistados no Brasil. “Nós, que temos as pessoas no centro da nossa estratégia, temos a obrigação de saber que a IA não tem a sensibilidade humana, mas ela pode facilitar – e muito – o dia a dia das pessoas e do RH”, diz o executivo da Unilever. “Entre os aprendizados está o legado que nós, profissionais de RH e líderes, queremos deixar para os colaboradores: garantir que uma empresa de sucesso esteja atualizada às tendências do futuro do trabalho.”
As pessoas na baia ao lado
Se a tendência do futuro é a convivência entre humanos e IA, como entender se os colaboradores se sentem confortáveis com esse cenário? E qual a melhor forma de criar junto com as pessoas?
Nos Estados Unidos, um caso recente mostrou que a conversa exige escuta e delicadeza. A CEO de uma plataforma de serviços para RH recebeu uma chuva de críticas ao anunciar que a empresa estava pronta para fazer onboarding de agentes de IA, atribuindo aos bots metas pessoais e um gestor no organograma. A comparação direta com colaboradores humanos causou polêmica. E a empresa acabou se retratando. Anunciou que a inovação lançada “gerou muitas questões que ainda não têm resposta”, e que “não vai mais incluir trabalhadores digitais” em seu produto.
Aqui no Brasil, a Suzano escolheu um caminho cauteloso de adoção de IA, justamente para que os times enxerguem o potencial da tecnologia, e construam o futuro – o da própria carreira e o da companhia – com ela. Em 2024, todos os 5 mil colaboradores da Suzano encontraram uma função nova na plataforma em que criam seu Plano de Desenvolvimento Individual: um botão para receber sugestões de uma IA sobre o que deveriam incluir no PDI. Bastava clicar lá para receber as ideias detalhadas. Não era obrigatório usar a ferramenta nem seguir o que a IA criou.

“A gente não está substituindo o papel do colaborador e do líder nesse processo, porque não entendemos que a tecnologia vem para substituir essa conversa, essa relação, essa troca. Mas ela ajuda a dar sugestões para sair daquele marco zero, que talvez possa ser mais complexo”, conta Beatriz Olivares, diretora de Gente e Gestão da Suzano. Segundo Beatriz, a inovação funcionou tão bem que a adesão à construção de PDI saltou de 70% em 2023 para 90% em 2024 (quando a IA foi implementada) entre os colaboradores de tecnologia.
Tecnologia, aliás, foi a grande área parceira do time de Gente nessa implementação gradual e exploratória da IA. Juntas, as duas áreas estão planejando as próximas iniciativas e implementando uma jornada de educação em IA para os colaboradores, em uma espécie de “MBA Digital”. “Esse é o futuro em que acreditamos: pessoas com conhecimento, transformando a forma com que fazem sua atividade. Sem essa preocupação de se estou sendo substituída ou não, mas claramente melhorando a performance”, diz Josilda Saad, diretora de tecnologia da Suzano.
O letramento de IA tem sido visto como importante até dentro de empresas de tecnologia. A consultoria de recursos humanos LHH fez uma pesquisa global com mais de mil profissionais de RH em todo o mundo sobre talentos digitais – e descobriu que a maioria dos entrevistados (49%) acredita que a atualização em IA é responsabilidade das organizações. Outros 37% consideram essa educação responsabilidade dos próprios funcionários. E 13% acreditam ser papel de ambas as partes.
“Esse número faz muito sentido por um lado técnico importante. Como a IA tem questões legais, de confidencialidade de dados e transparência, existe uma preocupação muito grande também de que o colaborador não faça algo errado por falta de conhecimento”, afirma Alexandre Tibechrani, diretor da vertical de upskilling digital da LHH. Tibechrani destaca ainda que é crucial que os colaboradores compreendam qual a política de uso de IA. Empresas que contratarem serviços de IA em ambiente próprio conseguirão ter controle maior sobre o fluxo de informações, mas aquelas que contratarem modelos disponíveis na internet terão um desafio de definir sua política interna. É uma nova relação de trabalho, que precisa ser encarada com seriedade por líderes e times (leia mais no quadro ao lado).

Isso é um desafio mesmo para empresas que fornecem, justamente, serviços de inteligência artificial. Caso da Avantia, do Recife, focada em segurança. A empresa tem cerca de 400 colaboradores. E está oferecendo aos times de áreas administrativas – metade da empresa – uma imersão em IA generativa, que envolve desde aprendizado básico com ChatGPT até discussões sobre ética. Para desenhar essa jornada e resultados, a empresa criou um comitê de IA, com representantes das áreas de Inovação, Negócios Digitais, Operações, Pessoas e Produtos. Foi um modelo escolhido justamente para incentivar o uso disseminado de IA na companhia. “Vamos trazer mais produtividade, mais inovação e olhar para como fazer as áreas interagirem para encontrar soluções”, diz Pollyanna Cavalcanti, diretora de RH da Avantia.
O comitê fica responsável por gerenciar as iniciativas de IA dentro da companhia, determinar o ritmo com que elas serão implementadas e antecipar benefícios e riscos. E terá como apoio, em 2025, um grupo de “embaixadores de IA”, colaboradores da companhia que farão uma ponte entre todos os colaboradores e o comitê, para reforçar as trocas e tirar dúvidas que possam surgir. O objetivo é que o fluxo constante de informações sobre o tema, em todas as áreas e todos os níveis, diminua a incidência de perguntas que hoje ainda surgem, como “Meu chefe vai dizer que fiz plágio se eu usar o ChatGPT?”.
Uma grande oportunidade para o RH
De todas as mudanças que a IA está trazendo, talvez a de maior impacto para o RH seja a possibilidade de liderar a “transformação social”, e não tecnológica, desta nova era, nas palavras de Ana Claudia Plihal, head de Soluções de Talentos do LinkedIn. Isso significa desapegar da lógica de produtividade – em que poderíamos cair no erro de tentar substituir pessoas por máquinas – e focar nas competências únicas que vão habilitar um time a tirar o melhor da inteligência artificial nos próximos anos.

“Há uma janela de oportunidade para os líderes de pessoas, as organizações, transformarem profundamente o mercado de trabalho”, diz. Como exemplo, ela cita a área de recrutamento do próprio LinkedIn. A empresa automatizou tarefas repetitivas que os recrutadores precisavam fazer, com a expectativa de aumentar a produtividade. No entanto, o número de candidatos entrevistados não subiu. E as entrevistas ficaram mais longas – passaram de 30 para 50 minutos, na média. Será que a estratégia deu errado? Nada disso. Com ajuda da IA, os recrutadores chegam agora com mais assertividade aos candidatos ideais. A satisfação dos líderes contratantes aumentou, assim como o nível de aderência do candidato ao entrar na companhia, segundo Ana.
“Na hora em que eu me desprendo das estruturas tradicionais de olhar o profissional, e vejo o conjunto de competências e habilidades que ele tem, eu começo a entender que esse novo colaborador vai ser muito mais versátil, mais aproveitado na sua potencialidade e do que o faz feliz”, diz.
O que Ana propõe não é nada novo. É, na verdade, a própria missão dos recursos humanos, que ganha agora mais luz e espaço por conta de uma revolução que se aproxima de todas as cadeiras – inclusive da sua.
Uma revolução no mundo do trabalho
Veja como a IA deve mudar profundamente a economia global e nossos processos dentro das organizações.
40% dos colaboradores do mundo estão em posições com alta exposição à IA. Em economias avançadas, são 60%. No Brasil, 41%.
47% dos colaboradores que usam IA dizem que não têm ideia de como alcançar o aumento esperado de produtividade.
55% dos líderes de RH dizem que suas soluções atuais de tecnologia não cobrem as necessidades vigentes e futuras do negócio.
25% apenas dos líderes de RH concordam que sua equipe pensa em como a tecnologia pode mudar o futuro do RH.
Fonte: FMI e Gartner
8 mandamentos da IA responsável
A adoção de IA demanda novas questões de compliance e cultura. Sergio Mantovani, especialista da Accenture no tema, recomenda os seguintes pilares para qualquer empresa que implemente projetos de IA:
Governança clara e princípios de uso
Definir como a IA deve ser aplicada, acompanhada e gerida.
Segurança
Os bots devem funcionar para o escopo designado, e jamais ser usados para outras finalidades não testadas e/ou validadas.
Robustez
Avaliar se o bot tem o comportamento esperado para o que foi designado.
Transparência
Todos os impactados, como colaboradores, têm direito de saber que estão lidando com uma IA.
Responsabilidade
A cadeia de papéis e responsabilidades pelo que a IA entrega precisa estar clara na organização.
Justiça e equidade
Todas as pessoas devem ser tratadas de forma equitativa, evitando vieses da IA.
Conformidade
Garantir que a IA cumpra as leis e regulamentações.
Humano no centro
Entender e gerenciar o impacto da IA nas pessoas.