Novos modos de fazer recrutamento
Como a IA e outras tecnologias estão mudando a busca por profissionais, as funções de quem trabalha na área – e o status desses caçadores de talentos.
Neste ano, a consultoria de recrutamento Mappit, do Talenses Group, conduziu um programa de trainee para a Multinacional, empresa do setor financeiro. O processo exigiu dos candidatos alto nível de habilidades matemáticas e raciocínio lógico. E ofereceu um diferencial ainda raro em seleções do tipo: as pessoas não precisaram perder horas de trânsito no deslocamento até a empresa – nem ter dor de cabeça pensando no que vestir na hora da prova. Em vez disso, os candidatos participaram remotamente.
A possibilidade de fazer pela internet aumentou o número de interessados: foram 12 mil inscritos para disputar 46 vagas – a empresa esperaria muito menos gente se fosse num modelo tradicional, presencial.
Do lado do recrutador, a tecnologia ajuda a selecionar. “A inscrição online democratizou o acesso, permitindo que candidatos de qualquer lugar pudessem participar”, diz Rodrigo Vianna, CEO da Mappit. “Essas ferramentas também são cruciais para a pré-seleção inicial: a tecnologia nos ajuda a ranquear e identificar os perfis mais promissores com base nas expectativas definidas.” Dos 12 mil candidatos, uma lista de cerca de 350 nomes seguiu para as etapas seguintes.
Com ciência de dados, inteligência artificial e outras ferramentas, empresas de recrutamento, headhunters e departamentos de RH estão vivenciando uma profunda mudança nos processos de recrutamento e seleção (R&S). É o que veremos a seguir.
Para melhorar o desempenho do recrutador
No novo recrutamento, bancos de cadastros na nuvem mantêm um arquivo de currículos enviados, e softwares organizam métricas e indicadores de candidatos em tempo real. Já um sistema de rastreamento de candidatos (ou ATS, na sigla em inglês) agiliza o processo de divulgação, atração e triagem. A inteligência artificial também vem dando as caras no R&S. Diversas pesquisas e especialistas ouvidos pela Você RH acreditam que a IA será cada vez mais usada na contratação. Segundo dados levantados pelo Linkedin, 45% dos recrutadores consultados na Europa e nos Estados Unidos creem que haverá um aumento do uso da IA e da automação na atividade ao longo dos próximos cinco anos.
Entre os recrutadores brasileiros, 71% acreditam que a IA generativa (tipo de inteligência artificial que gera conteúdo, como o ChatGPT) pode melhorar seu desempenho no dia a dia.A vantagem mais lembrada do uso de IA no trabalho é a mesma vista em outros setores: liberar o profissional das tarefas mais modorrentas e repetitivas, para que ele faça atividades refinadas e as que demandam maior sensibilidade. Ou seja, em vez de gastar horas preenchendo fichas de candidatos, ele pode se dedicar a construir conexões aprofundadas com potenciais futuros colegas. Ou planejar estratégias com gerentes a fim de dar mais vida ao employer branding. Nesse sentido específico, aliás, a tecnologia é de grande ajuda. Por exemplo, a IA pode informar os candidatos sobre uma eventual desclassificação. Não deixar o candidato no escuro, sem resposta, é quase um consolo. Ponto para a imagem de marca empregadora. “A tecnologia tem ajudado a minimizar desafios do passado, como a falta de feedback. Isso garante mais transparência e evita expectativas não atendidas”, explica Rodrigo.
Evita também que a empresa seja xingada nas redes sociais. “Como é que a gente cuida da ansiedade e da segurança psicológica dessas novas gerações nos processos seletivos? Hoje as pessoas não estão mais tão tranquilas em levar um ‘não’”, diz Eduardo Migliano, CEO da 99jobs, startup brasileira voltada a processos de recrutamento e seleção.
Mais tempo para conhecer o candidato
Com a IA fazendo o “trabalho braçal”, a possibilidade de o recrutador tornar o próprio trabalho mais valioso para a estratégia da empresa tem gerado um impacto que pode parecer contraintuitivo: entrevistas de emprego mais longas, e não mais curtas. “Se antes elas duravam meia hora, agora chegam a quase uma hora”, diz Ana Claudia Plihal, executiva de soluções de talentos do Linkedin no Brasil. “Não de forma intencional, mas porque você tem mais tempo para conhecer o candidato, já que outras atividades do processo foram automatizadas”, explica.Ana Claudia reforça, aliás, a posição do Linkedin de ser aliado dos recrutadores. “A primeira reação das empresas de ‘headhunting’ foi nos ver como concorrentes. Mas atuamos muito mais como parceiros nesse sentido. Hoje o Linkedin tem uma vertical dedicada a search staffing.”
A rede social conta atualmente com três ferramentas de IA, disponibilizadas recentemente em português, para ajudar os recrutadores. Elas executam tarefas como envio de mensagens personalizadas e busca inteligente de talentos. Segundo a plataforma, profissionais de recrutamento que usam a ferramenta tiveram uma taxa de aceitação 40% maior de mensagens enviadas a possíveis candidatos.
A IA tem também uma vantagem nítida no recrutamento em níveis executivos. A headhunter Isis Borge, diretora-executiva da Talenses e colunista da Você RH, explica que esse procedimento é, obviamente, mais delicado, pois envolve questões e tendências mercadológicas. “A IA nos ajuda com dados a entender o que está acontecendo no mercado. Da mesma forma que há setores que estão usando IA para definir precificação de commodities, a gente faz recrutamento usando a IA para entender o futuro”, diz.
Para os próximos anos, Isis acredita que haverá uma IA capaz de fazer entrevistas com potenciais candidatos. Mas não que sejam as entrevistas definitivas. A tecnologia guardaria esses dados para a empresa usar eventualmente, quando abrir uma vaga, e então agendar uma entrevista presencial. “Para o candidato é bom, ele faz a entrevista na hora que quiser, a ferramenta estaria disponível 24 horas por dia, e entraria nesse pipeline de talentos de uma empresa de consultoria. É muito mais rico do que preencher um formulário”, acredita. Para a organização, é uma oportunidade de democratizar o acesso ao processo seletivo, já que não excluiria as pessoas geograficamente distantes, que não podem fazer a entrevista em horário comercial. Ou quem não tem com quem deixar os filhos, por exemplo.
O que muda para o profissional de RH
A IA também já vem sendo vista como um diferencial para o currículo dos recrutadores. Os dados do Linkedin apontam que 35% dos profissionais, na Europa e nos EUA, estão usando essas tecnologias regularmente. A quantidade de recrutadores que adicionaram habilidades de IA ao seu perfil na rede social aumentou 14% no ano passado.Só que essas mudanças vão demandar também outras habilidades dos profissionais de R&S. “A capacidade de usar ferramentas tecnológicas para construir processos mais rápidos, dinâmicos e precisos será crucial”, diz Rodrigo Vianna. Já Isis acredita que os recrutadores terão de ser melhores perguntadores, para que a IA exerça suas tarefas da maneira mais assertiva possível. “As pessoas não serão substituídas pela IA, elas serão substituídas por pessoas que souberem usar melhor a IA”, resume.
Limitações e vieses
Em uma entrevista de 2022 à Você RH, Rodrigo Vianna reforçou que outra tecnologia cada vez mais usada, a videochamada, também tem limitações. Para ele, o vídeo acelera o processo de R&S, mas tira um pouco da naturalidade da entrevista e limita a avaliação de algo importante: a linguagem corporal. “Isso é matador para identificarmos personalidade ou se a pessoa está nervosa ou não. No online, perdemos muitos detalhes e, por isso, as etapas aumentam.” Ou seja, se por um lado a tecnologia pode acelerar e facilitar processos, por outro ela cria novos desafios. O uso correto, onde ela funciona melhor, é o que importa.
A IA pode localizar quais seriam os melhores candidatos e convidá-los a participar. Mas, ainda assim, é um trabalho arquitetado por humanos. “Todo projeto é construído de forma colaborativa entre consultoria, RH, os requisitantes e a alta liderança, com um forte alinhamento à cultura organizacional”, explica Rodrigo. “A compreensão da cultura da empresa orienta a criação das etapas do processo e a definição do perfil ideal do candidato. Esse processo inclui conversar com as pessoas, pois são elas que constroem a cultura.”
O maior problema relacionado à inteligência artificial é o enviesamento. Se não for bem treinada, a ferramenta pode replicar velhos preconceitos introjetados há séculos na sociedade. Casos do tipo não faltam. Se câmeras policiais programadas para detectar possíveis criminosos podem soar o alarme com uma frequência desproporcional diante de pessoas negras, imagine o que uma IA enviesada por fazer em um processo de seleção. “Teve uma empresa de tecnologia superconhecida que lançou uma IA para recrutamento que eliminava as mulheres do processo”, lembra Isis Borge. Pode haver também erros que não sejam necessariamente preconceituosos, mas que acabam atrapalhando o processo. “Uma grande corporação descobriu que sua IA ignorava candidatos que tivessem feito faculdade no exterior”, exemplifica.
Preparação antes de abraçar a tecnologia
Fica evidente que as empresas precisam estar preparadas antes de adotar a IA e outras tecnologias que, antes, não faziam parte do dia a dia do RH. Infelizmente, em muitos negócios, a realidade está distante disso. De acordo com um estudo deste ano da MIT Sloan Management Review Brasil, 75% dos respondentes acreditam que IA é uma necessidade prioritária ao RH, mas só 20% conseguem, de fato, identificar aplicações claras de inteligência artificial nos sistemas de HCM (conjunto de estratégias e ferramentas ligadas à gestão de pessoas) contratados por suas empresas.
Essa virada de chave, então, precisa acelerar. Agora que muitas corporações estão revendo a forma como selecionam e contratam profissionais de modo a serem locais de trabalho mais inclusivos, a tecnologia, se bem usada, é essencial.
Por exemplo: os processos de recrutamento têm dado menos ênfase à faculdade que tal candidato fez e mais às suas habilidades comportamentais. Medidas do tipo ajudam a desbranquear o mercado de trabalho – já que muitos negros, de origem mais humilde, não têm acesso às melhores universidades. As HRtechs podem contribuir para essa mudança.
Dados de 2024 da 99jobs mostram que, dos 11 milhões de cadastros na plataforma, 49% são de candidatos negros. Além disso, nos últimos cinco anos, houve crescimento de 238% de cadastro de jovens negros para processos seletivos de estágio e trainee. Em 2023, 42% das vagas de liderança em processos capitaneados pela HRtech foram preenchidos por pessoas negras. “Se não fizermos nada, a gente vai continuar construindo um país ultrarracista, ultramachista, e cada vez mais pessoas vão se sentir invisibilizadas”, diz Eduardo Migliano.
O novo recrutamento estará permeado de novas tecnologias. Isso é um fato. Ao liberarem os recrutadores para os trabalhos mais requintados, elas podem ser grandes aliadas do RH, e até dar a ele um protagonismo maior. Fica claro, então, que ela não vai atuar isolada do fator humano. “Quem quer trabalhar com recrutamento precisa gostar de pessoas”, diz Isis Borge. Um sentimento que os cérebros eletrônicos ainda não aprenderam a ter.
O melhor da IA para o recrutamento
Ferramentas aplicadas pelo Talenses Group aceleram diversas etapas, mas não substituem ações realizadas por humanos. Saiba onde a tecnologia é mais parceira dos recrutadores.
SUGESTÃO DE CARGOS
Ao ler um currículo, a ferramenta indica cargos alternativos que a pessoa poderia ocupar, além daquele para o qual ela se candidatou.
CRIAÇÃO DE ANÚNCIOS
Consultores informam à IA os requisitos, o contexto e outras informações relevantes para determinada vaga. A ferramenta cria o texto de anúncio, que é revisado pelos consultores na sequência.
HABILIDADES
A partir do título e da descrição da vaga, a ferramenta sugere ao recrutador possíveis competências necessárias aos candidatos.
TRADUÇÃO
A IA traduz currículos para português, inglês e outros idiomas, facilitando o dia a dia do profissional.
Este texto faz parte da edição 93 (agosto/setembro) da Você RH. Clique aqui para conferir outros conteúdos da revista impressa.