A importância de deixar um legado no trabalho
Lideranças menos preparadas para desenvolver pessoas e liderados que abrem mão de cargos mais altos são os novos desafios para os planos de sucessão
er a si mesmo como líder é o primeiro passo para se tornar um. Essa é a conclusão de uma série de estudos recentes conduzidos por pesquisadoras das universidades de Michigan e da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, com mais de 1.700 pessoas. A questão é que, atualmente, muita gente não almeja postos mais altos na hierarquia, mesmo tendo competências e perfil para ocupar essas posições. Os motivos são vários.
Segundo a análise, publicada no Academy Management Journal, existem três medos comuns que afastam os profissionais dos cargos de gestão, especialmente entre grupos minorizados, como mulheres e pessoas negras: parecer autocrático, mandão ou dominador; perder o senso de pertencimento à equipe, já que receberá tratamento diferenciado em relação aos demais; e parecer desqualificado para a função, fazendo com que não se sinta levado a sério. Aqueles que relatam níveis mais elevados desses receios são menos inclinados a agir como líder, portanto, menos propensos a serem vistos como líderes pelas chefias.
Mas é possível influenciar positivamente essas pessoas. Para isso, dizem as pesquisadoras, é necessário mostrar que a liderança não é algo nato, mas uma habilidade que pode ser aprendida. Na prática, as empresas precisam de gestores que inspirem, desenvolvam e deixem um legado. Essa mentalidade define o futuro das companhias e deve estar no cerne dos processos de sucessão.
Mas planejar a continuidade das funções é mais do que preencher vagas — é uma estratégia de gestão que amplia o engajamento dos profissionais com potencial de ascender e contribui para o desenvolvimento de competências necessárias para a companhia responder às mudanças de um mercado volátil e competitivo. Trata-se de um plano vivo, que deve ser atualizado com frequência de acordo com os novos desafios. “Mas o que acontece é que muitas empresas não identificam nem preparam os talentos”, afirma Joel Dutra, professor da Universidade de São Paulo e autor do livro Gestão do Processo Sucessório – Preservando o Negócio e a Estratégia. “Quando surge uma demanda, ficam pensando em quem pode assumi-la.” Segundo estudos conduzidos por Joel, 70% das companhias não trabalham no desenvolvimento e na retenção dos talentos identificados. “Como consequência, há uma perda de profissionais-chave de, em média, 30% ao ano”, diz o professor.
E os prejuízos não param por aí. Em um estudo publicado na revista Harvard Business Review, os pesquisadores Claudio Fernández-Aráoz, Gregory Nagel e Carrie Green constataram que a falta de atenção para as práticas de sucessão, principalmente da alta liderança, gera uma perda de 1 trilhão de dólares ao ano para as empresas. O prejuízo está relacionado a práticas ruins, como a contratação de um CEO externo inadequado.
Evitar esse problema não é tão complexo quanto parece. Envolve iniciar o planejamento de sucessão bem antes de precisar dele, realizar ações de desenvolvimento com os profissionais identificados, nomear os executivos mais promissores para o Conselho, preparando-os para assumir o alto escalão, e olhar com frequência para os candidatos internos e externos. O levantamento aborda os cargos mais altos, como o de presidente, mas o tema deve ser trabalhado em todos os níveis e desde a entrada do funcionário.
Para que o trabalho tenha os resultados esperados, é importante que a área de recursos humanos seja a grande articuladora do programa. “O papel do RH é diminuir vieses antigos e desenvolver líderes que tenham perspectiva de crescimento e visão de longo prazo”, diz Weider Campos, consultor da Egon Zehnder, empresa de gestão de executivos.
Redefinindo o potencial
As transformações do mundo do trabalho e das expectativas dos profissionais requerem uma repaginação dos processos de sucessão. “É preciso pensar em algo mais móvel, não apenas focado em estratégias engessadas por silos e sem observar os interesses de carreira dos indivíduos”, afirma Rafael Souto, presidente da consultoria Produtive. Só assim é possível contemplar um desafio que vem se acentuando nos últimos anos: profissionais que não querem assumir postos de liderança, por priorizarem a saúde e a qualidade de vida. Um estudo da Cia de Talentos mostra que jovens em cargos de média e alta gestão relatam frequentemente piora no bem-estar emocional, sobrecarga de trabalho e sensação de exaustão. E metade pretende pedir demissão (veja quadro). “Aquele modelo antigo, de entrar numa organização como trainee e, com o tempo, virar gestor, está em xeque”, diz Rafael.
Para enfrentar as atuais dificuldades da sucessão, Luiz Barosa, sócio da consultoria Deloitte, sugere adotar como base do planejamento a seguinte pergunta: o profissional tem potencial para quê? “Há outras formas de crescimento além da liderança, como as movimentações laterais”, afirma. Segundo ele, os modelos mais avançados de sucessão ampliam a busca de potencial para incluir não só aqueles que estão prestes a se tornar gestores. “As pessoas, atualmente, buscam coisas diferentes, como qualidade de vida e propósito, e as empresas precisam avaliar essas pretensões para realizar as movimentações de carreira”, diz.
Pensar em outras formas de crescimento e desenvolvimento é olhar com atenção a gestão da atratividade, afirma Sylmara Requena, conselheira administrativa independente, que foi vice-presidente de RH e ESG do Grupo Siemens no Brasil e acompanhou entre 2016 e 2017 a sucessão do CEO da empresa. “O programa mais adequado é aquele que mostra para o profissional, ao longo dos anos, até onde ele pode chegar”, diz. E às vezes há um limite de atratividade — a partir daquele ponto, a companhia não consegue oferecer mais opções de crescimento para alguns. “Nesse momento, ou você trabalha com uma estrutura diferente, com menos travas e mais flexibilidade [entre os cargos], ou vai perder os talentos”, diz Sylmara. Na visão dela, é importante ter em mente também que um profissional não precisa se prender a apenas uma carreira; pode ter várias. E isso abre muitas possibilidades de movimentação.
Atenta a esses pontos, a multinacional de seguros Chubb definiu, em 2021, um conceito de sucessão que leva em conta um pool de sucessores. A ideia é que os profissionais transitem em qualquer cargo e área, independentemente do setor em que atuam. Para isso, a empresa adotou a carreira em nuvem, em que o crescimento está atrelado aos interesses, inclusive pessoais, dos funcionários. Nesse modelo, em vez de trajetórias lineares, as pessoas podem atuar em projetos e equipes multidisciplinares, sem seguir rotas definidas. “Incentivamos e promovemos a livre movimentação, de acordo com a expectativa e o perfil de cada um”, afirma Carla Jacarini, vice-presidente de recursos humanos da Chubb. Algumas premissas permeiam as decisões de sucessão e promoção: o perfil do profissional, no que ele é bom e o que deseja para a carreira. “Se uma pessoa da área administrativa, por exemplo, tiver interesse em mudar para TI e possuir alguma habilidade para o cargo, por que não prepará-la para esse movimento?”, diz Carla.
Para comunicar esse novo entendimento de carreira, a companhia realizou workshops abordando a sucessão contemporânea e incentivando conversas sobre o assunto. “Depois de quase um ano desde o início do programa, percebemos um maior aproveitamento de talentos no recrutamento interno, com pessoas transitando entre carreiras e áreas distintas com êxito”, afirma a executiva. Segundo ela, 81% das posições abertas em 2022 na empresa foram preenchidas com profissionais que integram o pool de talentos.
Treinar e acompanhar
Outra empresa que aposta na livre movimentação é a fabricante de cervejas Heineken. A companhia revisou recentemente o mapa sucessório, passando a considerar todas as posições a partir da gerência. Atualmente, 90% dessas funções têm sucessores identificados a partir da avaliação de comitês de líderes e RH.
Para auxiliar nesse trabalho, a empresa conta com um sistema online que facilita o intercâmbio de informações entre as áreas e permite que todos os gestores visualizem o mapeamento. “A área de vendas, por exemplo, pode ver que um talento de marketing tem interesse em migrar para o setor e possui as características necessárias”, afirma Ana Carolina Guido Steck, gerente de desenvolvimento organizacional e cultura da Heineken. “Mas não basta apenas ter um mapa sucessório. O mais importante é o que fazemos para que esses talentos entendam que estão mapeados e de que forma vamos trabalhar a aceleração das skills necessárias para que, no momento em que a posição estiver aberta, o candidato esteja pronto”, diz Ana Carolina. Para isso, a empresa lançou o Shining Stars, programa de treinamento para os talentos mapeados como sucessores. Há desde parceria com consultorias externas e ações de mentoria até treinamento de imersão focado em autoconhecimento.
Para 2023, o objetivo é consolidar o exercício de sucessão, expandir o público elegível às ações de desenvolvimento e trazer maior representatividade de mulheres e pessoas negras ao mapa de sucessão. A meta é ter 50% de mulheres em cargos de liderança até 2026 e 40% de líderes negros até 2030.
Líderes que desenvolvem
Outro ponto central para a sucessão é preparar as lideranças para acolher os novos anseios das equipes. “Gestão de carreira não é só colocar o funcionário nas prateleiras de cima com promoções automáticas, e sim fazer o gerenciamento das expectativas de maneira contínua”, diz João Lins, diretor executivo da área de cursos corporativos da FGV Brasil. E não basta compartilhar ensinamentos técnicos. “Pense em uma liderança de sucesso com a qual você já trabalhou e pergunte-se o que aprendeu com ela”, sugere João. “Você verá que recebeu bagagem de vida e segurança para seguir adiante.” E isso tem a ver com inspiração. “Um bom líder deixa esse legado porque entende que a organização não são seus ativos, como prédios, máquinas e equipamentos, e sim as pessoas e sua cultura”, afirma o especialista.
A healthtech Bionexo tem olhado com atenção para isso. Recentemente, fechou parceria com uma escola de negócios para impulsionar esse novo perfil de liderança, que busca inspirar e engajar pessoas. “O programa está dentro da nossa estratégia de contar com uma ‘liderança desenvolvedora’”, diz Patrícia Piñeiro, diretora de gente e gestão da Bionexo. A iniciativa contempla os quase 100 gestores globais da companhia, incluindo profissionais das filiais na Argentina, no México e na Colômbia, em um programa de 12 meses com trilhas customizadas de acordo com os principais desafios de cultura e engajamento corporativos.
O fortalecimento de canais e rituais de comunicação é outra ação da empresa para fomentar o desenvolvimento. Em 2021, foi implementado o People Talks, programa de escuta ativa das equipes. “São encontros quinzenais em que os colaboradores, escolhidos de forma aleatória para participar, e os gestores conversam sobre temas livres, de forma leve, para que seja possível identificar os interesses e as necessidades de cada um”, diz Patrícia. A executiva revela que a companhia avalia também adotar o job shadowing, em que funcionários podem acompanhar por determinado período os atuais ocupantes das cadeiras para as quais são preparados.
Legado geracional
A integração entre quem tem mais experiência e quem está começando agora também importa no planejamento sucessório. É que esse processo não diz respeito apenas ao líder e seus liderados, e sim ao legado que as pessoas, independentemente do cargo que ocupam, podem deixar ao sair da empresa. “Quem viveu de maneira intensa os processos inflacionários nos anos 1980 e 1990, por exemplo, sendo líder ou não, pode colaborar com mecanismos para fazer esse conhecimento fluir dentro do ambiente e conseguir melhores resultados no momento atual”, afirma João, da Fundação Getulio Vargas.
Na visão de Camila Zanchim, gerente de recursos humanos do grupo varejista GPA, olhar para a sucessão é construir uma história que vai passando de profissional para profissional, que mantém viva a cultura empresarial e sustenta a marca empregadora. “Mesmo que existam pessoas saindo para assumir novos desafios, quando você constrói o legado, preserva a essência”, afirma. “Assim, quem chega segue naturalmente aquele caminho.”
No GPA, que reúne marcas como Compre Bem, Extra e Pão de Açúcar, há programas de sucessão para todas as áreas e níveis, inclusive para a operação. Além da área administrativa e de gestão, os treinamentos de preparação para a liderança contemplam as drogarias e as centrais de distribuição e logística. O modelo, que passou a ser adotado em 2013, ganhou atualizações para se adequar aos novos anseios dos profissionais. “Quando o programa começou, os participantes eram apenas os colaboradores indicados. Hoje, contamos com um processo seletivo que envolve inscrição e um plano de comunicação para que qualquer pessoa que tiver interesse em crescer na companhia possa se inscrever”, afirma Camila. “Na maioria dos casos, é mais estratégico investir em programas internos de desenvolvimento do que buscar profissionais no mercado, pois temos colaboradores que se identificam com a cultura da empresa e conhecem a rotina. Geralmente são bem preparados tecnicamente, mas precisam desenvolver competências comportamentais e pensar em crescimento na carreira.”
Em nove anos, mais de 4.500 funcionários participaram do programa, sendo 72% promovidos internamente. Só em 2022 foram realizadas 26 turmas de treinamento com quase 700 participantes. O desenvolvimento focado em operações aborda temas como carreira, protagonismo e inovação, além de formação técnica, e conta com missões que devem ser cumpridas na loja para fixação e aplicação prática do conteúdo.
Esse patrimônio imaterial é maior do que a sucessão e acontece entre as áreas — trata-se de um fluxo de conhecimento que percorre a organização. “O grande legado são as pessoas que você formou ao longo de sua trajetória”, diz João Lins. “Todo mundo já teve sucessos e fracassos na vida profissional, mas se me perguntarem qual foi o Ebitda que eu gerei em 2014, por exemplo, não vou lembrar. Mas me lembro de cada pessoa que trabalhou comigo e hoje está bem posicionada no mercado — isso me dá orgulho.”
Esta reportagem faz parte da edição 83 (dezembro/janeiro) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante