Veja como a tecnologia está mudando o trabalho dos advogados
A adoção de novas ferramentas para dar agilidade ao trabalho é uma das alterações mais perceptíveis
O Brasil é um dos países com o maior número de advogados no mundo. De acordo com levantamento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 2016 eram 1 milhão de profissionais.
Por aqui, a alta complexidade jurídica e o excesso de burocracia fazem do direito um terreno fértil. Por ano, o mercado jurídico privado fatura cerca de 50 bilhões de reais. Engana-se, porém, quem acredita que o setor tradicional esteja blindado das transformações que sacodem outros segmentos.
O surgimento de novas carreiras, o uso de tecnologias para acelerar tarefas que levavam horas e até mesmo novos modelos de cobrança são alterações já perceptíveis no dia a dia das firmas e dos departamentos jurídicos.
“Embora demorada, já conseguimos perceber que o universo da advocacia tem sido alterado em busca de se tornar mais célere e se alinhar com o mundo lá fora. Não podemos usar abotoaduras e falar latim quando todos usam emoji”, afirma Bruno Feigelson, cofundador do Future Law, centro de inovação voltado para o direito.
Tempos modernos
Uma das mudanças perceptíveis no dia a dia dos escritórios de direito é a adoção de novas ferramentas para dar agilidade aos trabalhos repetitivos que antes demandavam muito tempo dos profissionais.
Pesquisas de jurisprudência, gestão dos processos em andamento, elaboração de peças generalistas são algumas das tarefas que, aos poucos, estão sendo executadas por robôs.
Até o Supremo Tribunal Federal tem o seu. Batizado de Vitor, a ferramenta criada em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), começou a ser utilizada em agosto de 2018 para identificar e categorizar os temas que sobem para o STF.
No TozziniFreire, um dos maiores escritórios do Brasil, que emprega 660 profissionais, há um ano e meio as máquinas começaram a ser usadas, em fase de testes, para gerar relatórios de auditoria legal, atividade realizada no processo de apuração da situação regulatória, fiscal e contábil das empresas.
Com base em machine learning, a solução deu tão certo que passou a ser adotada como oficial no final de janeiro. “Esse tipo de função, quando feita por um profissional, demandava muito trabalho. Com o software, esperamos fazer o mesmo em menos tempo e de forma mais eficiente”, afirma Fernando Serec, CEO do TozziniFreire.
Além do investimento em tecnologia, o escritório também decidiu criar um programa de inovação, o Think Future, que realiza debates mensais sobre temas que estão surgindo na área jurídica, como cidades inteligentes, questões legais dos carros autônomos e privacidade de dados.
Os encontros são regados a pizza e refrigerante, lembrando o ambiente de startups. “A ideia é que a gente explore não só a tecnologia, mas tudo o que pode mudar em nossos serviços”, completa Fernando.
Um novo perfil
O posicionamento do TozziniFreire revela uma tendência na advocacia, que está às voltas com o surgimento de novos debates e legislações. A natureza jurídica de um robô, relações laborais entre motoristas e empresas, como Uber e 99, ou limites éticos da biotecnologia são alguns dos assuntos que os advogados vão precisar saber, por exemplo.
“Antigamente, as leis duravam 40, 50 anos, mas os fatos sociais estão exigindo a criação de normas em uma velocidade muito rápida. Para acompanhar, o profissional vai precisar de atualização constante”, afirma Bruno, do Future Law.
E foi exatamente para entender o que estava acontecendo no mercado que, no final de 2018, a advogada Camila Sardo, de 29 anos, buscou dois cursos de extensão em temas que até algum tempo atrás não estariam em seu radar: resolução online de disputas e future thinking.
Atuando há dois anos na área de direito empresarial na Raízen, empresa de produção de açúcar, etanol e bioeletricidade, a jovem percebeu que poderia utilizar a prática de negociação, regulamentada pela Lei de Mediação, em 2015, para ganhar agilidade em alguns acordos que chegavam a levar meses.
“O curso ajudou a entender a capilaridade desse dispositivo e a observar as melhores práticas. Hoje, usamos uma ferramenta chamada Sem Processo e chegamos a fechar disputas em um dia”, afirma Camila, que admite ter ficado receosa no início.
“O direito é uma carreira mais conservadora, não temos muita margem para o risco, então no começo bate uma desconfiança”, diz. Atualmente, por causa dos cursos, a profissional está envolvida em um projeto de inovação para outras áreas do departamento jurídico da Raízen. “É importante encarar essas mudanças como oportunidade para não ficar estagnado”, completa.
De acordo com Camila Dable, da Salomon Azzi, consultoria especializada em recrutamento de advogados, além das mudanças geradas por transformações externas, as bancas e as empresas também estão em busca de um perfil de profissional mais colaborativo, que saia do “juridiquês” e consiga traçar estratégias que levem em conta o impacto nos negócios.
Em épocas de crise, as companhias ficam mais zelosas com os custos financeiros e não podem mais demorar meses em uma questão ou colocar dez advogados em um projeto. “Hoje, os profissionais de direito precisam ajudar na tomada de decisões importantes, e não atuar apenas como meros conselheiros.
Por isso, embora sejam especialistas, eles têm de enxergar áreas sinérgicas. Por exemplo, na aquisição de uma empresa, não basta ser alguém com conhecimento de fusões e aquisições, é preciso observar questões trabalhistas, tributárias, ambientais”, afirma Camila.
Mais perto das startups
Não é de hoje que as grandes corporações de tecnologia têm se tornado clientes e influenciado a dinâmica dos escritórios de direito tradicionais. O Pinheiro Neto, por exemplo, mantém uma equipe interdisciplinar, com cerca de 60 advogados, para atender empresas do setor há oito anos.
“Percebemos que tínhamos de atuar de forma diferente com esses clientes. São contratos, linguagem e forma de se vestir próprias”, diz Alexandre Bertoldi, sócio-gestor do escritório Pinheiro Neto.
A relevância dessas organizações para os negócios do escritório, que hoje representam de 10 a 15 de seus 50 principais clientes, levou a firma a abrir uma unidade, em julho do ano passado, em Palo Alto, no Vale do Silício. “Realizávamos viagens e visitas constantes, então resolvemos criar um escritório lá”, afirma Alexandre.
Com o protagonismo cada vez maior de startups na economia, os escritórios também começam a olhar para empresas de tecnologia menores, que, mesmo não faturando bilhões, possuem potencial de crescimento.
Desde 2014, por exemplo, o TozziniFreire contratou a aceleradora ACE para se aproximar do ecossistema de startups. Além de utilizar o espaço de coworking WeWork e da incubadora InovaBra, do Bradesco, os advogados passaram a dar palestras e a participar de eventos do setor. Para atender esses clientes — iniciantes e, geralmente, sem muito capital —, o escritório, fundado em 1976, precisou flexibilizar o método de pagamento.
As convencionais cobranças por hora, que não caberiam no bolso dos empreendedores, foram substituídas por um modelo em que a startup paga um preço menor no início (quando ainda estão se consolidando) e o restante é acertado quando recebem um aporte de investimento ou abrem capital na bolsa de valores.
Nesses quatro anos, cerca de 100 startups foram atendidas nesse formato pelo TozziniFreire. “São companhias pujantes, e muitas já deixaram de ser startups”, afirma Fernando Serec.
Outro exemplo é o escritório de advocacia Braga, Nascimento e Zilio, que foi além na hora de flexibilizar a cobrança de honorários para as startups. A banca, que tem 28 anos de existência e até 2016 nem sequer possuía uma área de inovação, há dois anos criou um departamento focado apenas em atender empreendores, aceleradoras e investidoras e lançou uma moeda própria: o BNZ Points.
Operando por meio de um atendimento pré-pago, os clientes adquirem pacotes da moeda virtual a partir de 2 000 pontos e sabem de antemão quantos BNZs o serviço custará.
“É bem transparente. No modelo por hora, os clientes não sabem exatamente quanto será cobrado e sempre sai mais caro. Além disso, conseguimos atender negócios em fases muito iniciais, que têm bastante demanda mas não conseguem contratar bancas tradicionais”, afirma Arthur Braga Nascimento, filho de um dos fundadores do BNZ e idealizador da área de inovação.
Com mais de 100 clientes, Arthur pretende expandir as operações do braço de empreendedorismo para o exterior, abrindo um escritório em Miami e em Nova York até o final de fevereiro.
Do outro lado do balcão
Se o ecossistema de startups pode gerar oportunidades de negócio para os escritórios tradicionais de direito, as legaltechs ou lawtechs, startups de tecnologia voltadas para serviços jurídicos, também são uma boa opção para advogados que querem empreender.
Com 102 milhões de processos em tramitação e gastando cerca de 1,3% do PIB com o setor, de acordo com o relatório do Conselho Nacional de Justiça, o mercado é grande o suficiente para quem está dos dois lados do balcão.
Criada em outubro de 2017, a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (Ab2L) já reuniu mais de 100 empresas do ramo. “Muitos profissionais ficam alarmados com a chegada da tecnologia no setor.
Realmente, tarefas mais básicas e processuais, muitas vezes realizadas por advogados juniores, serão efetuadas por softwares. Entretanto, essas mesmas soluções podem gerar novas formas de trabalho”, afirma Emerson Fabiani, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo.
Segundo ele, a tendência é que as ferramentas disponíveis hoje, focadas em litígios de grandes volumes, como questões de direito do consumidor, devem se expandir para temas mais estratégicos. “Já existem soluções que ajudam a fazer pesquisas de mercado, o que pode afetar a área de fusões e aquisições, por exemplo”, diz.
De olho nesse potencial, a empreendedora Michelle Morcos, de 35 anos, fundou a startup de negociação de acordos Justto, em 2015. Advogada de formação, a paulistana trabalhou durante dez anos em escritórios de advocacia, na área de direito empresarial.
“Ouvia bastante reclamação de clientes sobre a lentidão do Judiciário e como era caro realizar ações como arbitragem, que não dependiam do sistema forense. Em 2010, vi uma reportagem que dizia que a General Electric economizava 1 milhão de dólares por ano com arbitragem online. Isso acendeu uma luzinha”, afirma.
Michelle reuniu 200 000 reais em economias e, junto com o marido, o também advogado Alexandre Viola, lançaram, em 2013, o embrião da Justto: a Arbitranet, primeira câmara de arbitragem online.
A ideia, embora inovadora, não ganhava escala. “Somos advogados, então não entendíamos nada de marketing, vendas, não sabíamos como colocar uma empresa para rodar”, diz Michelle.
Ainda conciliando os dois empregos, em 2015 os empreendedores conheceram a aceleradora ACE em um evento. Sem nenhum cliente, resolveram participar do processo de aceleração da organização, que durava seis meses. “Isso foi um divisor de águas, entendemos o que era um modelo de negócio, o mercado e as reais necessidades dos consumidores.
Percebemos que, embora a Arbitranet funcionasse para alguns conflitos, os escritórios buscavam ferramentas para outros, como contestação e litígios trabalhistas.” O resultado foi a criação de outra solução, em 2016: uma plataforma de negociação de acordos.
Aí nasceu a Justto. Michelle e Alexandre largaram os empregos, se mudaram para São José dos Campos e passaram a se dedicar inteiramente ao projeto. “Em termos de remuneração, o impacto foi bem alto, tivemos de mudar o padrão de vida e nos adaptar”, diz.
Depois de duas rodadas de investidores anjos e um aporte de 2,5 milhões de reais, em setembro de 2018, por meio de um programa do BNDES, a startup hoje tem 22 funcionários e 70 clientes, como Natura, CVC e Kroton.
“Comparando com quando começamos, em 2013, percebemos que as companhias e os escritórios estão muito mais abertos à tecnologia do que antes”, diz Michelle. Abertura e flexibilidade devem ser as palavras de ordem para os profissionais de direito nos próximos anos, seja para quem quer empreender, se especializar ou mudar a forma como trabalha.