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A psicóloga que deixou a carreira de 20 anos em RH para abrir uma livraria

Dona da Livraria da Tarde, Monica Carvalho é especializada em desenvolvimento humano, mas mudou de área para realizar o sonho de se tornar livreira

Por Elisa Tozzi
Atualizado em 23 abr 2021, 09h04 - Publicado em 23 abr 2021, 08h00
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  • O que era para ser apenas uma atuação provisória se tornou uma carreira de duas décadas. Foi o que aconteceu com a psicóloga mineira Monica Carvalho, de 48 anos, que entrou no RH um pouco por acaso para se sustentar, e acabou gostando da profissão quando encontrou a área de desenvolvimento de pessoas.

    O casamento começou a perder o brilho em 2018. Na época, ela enfrentou uma crise pessoal que a levou a pensar sobre sua trajetória e seus desejos mais profundos. Dessa reflexão, surgiu uma ideia que para muitos poderia soar como loucura: abrir uma livraria. Monica foi em frente e inaugurou a Livraria da Tarde no bairro de Pinheiros (São Paulo) três meses antes de a pandemia de a covid-19 chegar ao Brasil. Com a crise, precisou se reinventar mais uma vez. Mas a felicidade de estar realizando um sonho antigo traz a coragem para seguir em frente. Leia a seguir a entrevista que a livreira concedeu para VOCÊ RH

    Você é formada em psicologia e poderia ter atuado em muitas frentes. Como foi parar no RH?

    Começou depois que me formei. Na faculdade, eu tinha um sonho de trabalhar em clínica, tanto que participei de grupos de estudo e estagiei em clínicas.  Depois de formada eu me casei com um namorado de séculos. Nós ficamos só dois anos casados, não deu certo. Separada, eu me vi com contas para pagar e o entendimento de que não conseguiria me sustentar clinicando – é um investimento alto, que precisa de estudo, terapia, aluguel de um espaço, construção de clientela.

    Foi aí que o RH entrou na minha vida, numa forma não planejada. Comecei a pensar: o que eu sei fazer? Sabia aplicar testes, laudos, entrevistas e tinha a cursado a disciplina de gestão de pessoas na faculdade. Então era um emprego que poderia tentar. Eu me candidatei a uma vaga e comecei a trabalhar. Entrei por necessidade, não por escolha. Sempre pensava que não ia ficar muito tempo nessa praia.

    “O RH entrou na minha vida numa forma não planejada”

    Mas por que teve uma carreira tão longeva na área?

    Eu fui descobrindo o RH e gostando da área de desenvolvimento humano, de treinamento, de formação de líderes e de educação corporativa. Depois que tive um primeiro emprego de RH generalista, migrei para a área de treinamento, virei coordenadora e fui estudando metodologias, entendendo mais sobre cultura organizacional e gostei disso.

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    Em 2005, liguei para o meu irmão, que trabalhava em uma consultoria, e falei que se ele soubesse de algo na minha área, podia me avisar. Era a Mendes Miguel, e eles me convidaram para fazer programas de liderança em Belo Horizonte, mas me disseram que iam se mudar para São Paulo e estavam procurando uma pessoa para ir com o o Alcir Miguel Jr., um dos sócios. Eu estava naquela transição: sem emprego, sem namorado, sem nada. E falei: “Vamos”. Sempre adorei São Paulo e não tinha nada a perder. Mas Alcir me disse que, como íamos começar a consultoria, eu teria que ser comercial também.

    Isso te assustou?

    No começo eu pensei que não conseguiria. Sabia que era boa em fazer relacionamentos porque quem trabalha em RH precisa ter essa qualidade de ouvir, de entender o outro e de contribuir para o desenvolvimento. Mas Alcir me disse que eu sabia, sim. Ele me falou que, como nossos clientes são do RH, eu tinha a linguagem e conhecia os desafios. E eu quis tentar. Alcir enxergou em mim uma habilidade que eu não imaginava que possuísse.

    Comecei a fazer contatos, e aqui em São Paulo tenho a vantagem de ser mineira: os paulistanos adoram os mineiros [risos]. À medida que eu ligava para as pessoas, elas me reconheciam pelo meu sotaque. Fui abrindo portas. Essa transição de RH de empresa para consultora foi muito tranquila para mim. E quando a empresa é pequena, a gente joga nas 11. Por isso, eu me desenvolvi muito nos primeiros quatro anos, quando éramos em apenas três pessoas. A gente fazia tudo – vendia, desenvolvia a solução e entregava.

    “Quem trabalha em RH precisa ter essa qualidade de ouvir, de entender o outro e de contribuir para o desenvolvimento”

    Quando você começou a perceber que estava se distanciando do mundo corporativo?

    Em 2017 vivemos um momento de transição para o mundo digital. As demandas por cursos online começaram a crescer muito e nós éramos uma empresa de treinamentos presenciais, não tínhamos quase nada virtual. Percebemos que, ou seguíamos perdendo mercado, ou achávamos um meio de trazer o digital para a consultoria.  Vimos que existia oportunidade de mudar de nome, rever a marca e nos reposicionar no mercado. Foi assim que surgiu a Movidaria.

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    Para redesenhar tudo, pedimos ajuda para outra consultoria. Eu já era sócia da empresa e o consultor que nos orientou fez um trabalho individual com os sócios, conduzindo conversas com a gente. Numa delas, ele me perguntou: “Onde você imagina estar daqui a três anos?”. Eu não sabia responder. Três anos é um tempo esquisito, porque está perto, mas longe. Só que não tão longe quanto dez anos, quando você pode até pensar em pendurar as chuteiras. Precisei pensar. Fiquei com aquela pergunta dentro de mim e refletindo que, se eu não sabia a resposta, é porque talvez não quisesse mais ficar lá.  Eu tinha que fazer o contrato com meus sócios e disse que ia seguir. Mas em 2018 aquela pergunta continuou na minha cabeça.

    O que aconteceu?

    Eu tive um problema de saúde em 2018 e precisava descansar. Resolvi então passar férias em Portugal, porque é um país acolhedor e no qual eu não tenho que pensar muito, raciocinar em outra língua. Estava em Lisboa procurando um remédio e toda hora que eu via um comércio achando que ia encontrar a farmácia, parava numa livraria. Eu não sou uma pessoa ligada aos sinais, sou pragmática. Mas achei que que o universo estava me falando alguma coisa, porque eu sempre brincava que ia ter uma livraria.

    Voltei para o Brasil com aquele incômodo e resolvi retomar a análise porque eu, que sempre fui muito apaixonada pelo trabalho, não estava mais querendo ir para a consultoria. Não estava legal. No processo psicanalítico, percebi que ter vivido esse momento de adoecimento também fazia parte do meu desejo de fazer outras coisas da vida.

    Há 20 anos eu estava fazendo algo provisório: eu entrei no RH para pagar as contas. O meu tempo “no provisório” foram 20 anos porque eu me encontrei, encontrei a Movidaria, formada por pessoas que eu adoro, construí uma empresa que admiro. Mas eu tinha desejo de fazer outra coisa. Esse incômodo começou a chegar no limite e fui me reconectar com o que eu sonhei em fazer: trabalhar com cultura. Mas não tenho talento para escrever ou cantar. O meu talento é ler e me comunicar com as pessoas. O jeito era abrir uma livraria.

    “Sonhava em trabalhar com cultura, mas não tenho talento para escrever ou cantar. O meu talento é ler e me comunicar. O jeito era abrir uma livraria”

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    Isso aconteceu em 2018, uma época em que grandes redes de livrarias, como Saraiva e Cultura, estavam com problemas sérios. Como viu esse movimento?

    Cada um enxerga o que lhe cabe e eu pensei que talvez existisse uma chance. Se as grandes livrarias estão fechando, quem sabe não tem oportunidade para as pequenas? Eu, como leitora, sentia falta de um lugar gostoso para ir tomar um café e falar de livros. Conversei com os meus sócios sobre isso e eles falaram: “Tá doida? Abrir uma livraria?”. Então disseram para eu tirar um sabático, ver o mercado, pesquisar e continuar como sócia, mesmo sem receber.

    Como eu tenho essa habilidade de relacionamento e a característica da cara de pau, comecei a conversar com as pessoas. Ia nas redes sociais e me apresentava, dizia que queria abrir uma livraria e convidava a pessoa para um café. Falei com editores, com a Câmara Brasileira do Livro e com livreiros que me acolheram, como o Alexandre Martins Fontes, da Livraria Martins Fontes, e a Elisa Ventura, da Blooks. Em junho de 2018, decidi, com a força e a coragem, que eu abriria a livraria.

    Nessa mesma época outras livrarias de rua surgiram em São Paulo. Como encarou a concorrência?

    Pesquisando as regiões para abrir a loja, percebi que queria ficar em Pinheiros por causa do público:  muitos profissionais liberais, psicólogos, professores, pessoas que consomem livros. Mas eu sabia que outras livrarias iriam abrir por ali, como a Travessa e a Mandarina. Então fui conversar com o Alencar, dono da Quixote, de Belo Horizonte, e ele me falou que está há anos na Savassi convivendo perfeitamente com quatro livrarias na mesma rua. E isso acontece porque cada uma tem o seu estilo e os clientes escolhem pela sua identidade e seu jeito de trabalhar.

    A primeira coisa que fiz foi pensar no café, porque eu queria os doces do Made by Nina. Eu sempre brincava que se tivesse uma livraria, a Nina faria o café. Depois de achar o imóvel, brigar com os pedreiros e com o arquiteto, desenhar as habilidades que eu procurava na equipe, abrimos a loja em dezembro de 2019.

    “Não imaginava a pandemia. Abrimos em 20 de dezembro de 2019 e fechamos em 20 de março de 2020 para reabrir só em julho”

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    E três meses depois, veio a pandemia. Como foi?

    Não imaginava a pandemia. Abrimos em 20 de dezembro de 2019 e fechamos em 20 de março de 2020 para reabrir só em julho. O meu sabático na Movidaria terminou em maio do ano passado, em plena pandemia, e os sócios me disseram para continuar com eles, atuando nos bastidores. Na Livraria da Tarde, fiquei três meses de portas fechadas, atendendo via WhatsApp e fazendo um trabalho forte de redes sociais porque éramos poucos conhecidos. Os clientes ajudaram e fomos crescendo no Instagram, saindo de 3.000 para 10.000 seguidores na reabertura. O Lennon, meu cachorro, virou sem querer mascote da livraria e ajudou. Recebo visitas de pessoas de outros bairros, cidades e até estados que nos conheceram nas redes sociais.

    Nessa segunda onda ficamos 45 dias fechados. É claro que é horrível e que assusta, mas estamos mais preparados. Eu não tinha pretensão, mas em agosto de 2020 decidi abrir um site próprio. Independentemente da pandemia, é importante ter, porque o comportamento do cliente mudou e é inviável fazer entregas só por Correios. Lançamos em janeiro, e ajuda muito como complemento para a loja fechada. O nosso clube de leitura, que continua online, atrai bastante gente também.

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    Uma publicação compartilhada por Livraria da Tarde (@livrariadatarde)

    Você foi contemplada no projeto Retomada das Livrarias, de doações para pequenas livrarias atingidas pela crise. Como foi fazer parte disso?

    Foi um projeto maravilhoso para dar um apoio para nós, pois todo mundo foi pego de surpresa pela pandemia. A ideia, que partiu do Alexandre Martins Fontes, foi formar um grupo para auxiliar as pequenas livrarias e gerar um crowdfunding. Várias editoras poderosas doaram e nós ganhamos R.000. Como o Alexandre era próximo de mim, eu pedi para fazer parte desse grupo, formado por outros livreiros, como Samuel Seibel, da Livraria da Vila, e Rui Campos, da Livraria da Travessa.

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    Depois que o projeto Retomada terminou e não havia mais conflito de interesse, eles me deixaram participar. Passei a fazer parte dessas discussões de ações para o mercado e trago um olhar diferente, pois sou a única mulher, sou mais jovem e tenho pouco tempo de mercado – ao contrário deles, que estão nesse setor há décadas. É preciso enxergar o mercado não como massa única, mas com perfis diferentes, tanto de editoras quanto de livrarias. E nós temos que nos unir, por isso estou formando um grupo de livrarias independentes pequenas para discutir as nossas questões.

    Quais foram suas referências para criar a Livraria da Tarde?

    Quando comecei a pensar na minha livraria, fui para Nova York. Eu sou dessas que viaja para visitar livraria, então sabia que Nova York estava se tornando um reduto forte de lojas independentes. Fiquei só quatro dias e percorri dez livrarias nos lados Oeste e Leste e no Sul de Manhattan, além do Brooklyn, onde eu me apaixonei pela Greenlight.

    Assim que entrei lá, estava tocando música brasileira, Milton Nascimento, e numa mesa de exposição eu vi vários livros da Clarice Lispector. Também me chamou atenção a dedicação deles com o clube do livro, algo que tento replicar aqui. Em Manhattan, no Upper West Side, gostei muito da Book Culture, que trouxe a ideia de fazer “blind dates”, nos quais os clientes recebem livros embrulhados sem saber quais são os títulos. Ainda não fiz por aqui, mas vou fazer. E todas as livrarias lá têm um ambiente gostoso, o pessoal entra com o cachorro. Queria algo assim, acolhedor para humanos e cachorros.

    Nesse momento de crise, em que a gente precisa de um tempo para se reconectar, a leitura ajuda muito. Quais livros você indica agora?

    Vou indicar três. O que eu mais indico e que é um dos meus mais vendidos é Vamos Comprar um Poeta (Dublinense), de Afonso Cruz. É uma distopia leve sobre uma sociedade em que os artistas são consumidos e uma família decide comprar um poeta. E ter um poeta em casa transforma aquela família, porque ele traz outras lentes para enxergar o mundo.

    Outro livro que eu gosto muito é o de poesia Dicionário de Imprecisões (Impressões de Minas), de Ana Elisa Ribeiro. Na pandemia eu leio bastante poesia e a Ana Elisa escreve de um jeito bem leve, mas te dando uns recados.

    Por último, indico um clássico: Dom Quixote (Penguin Companhia), do Miguel de Cervantes. Estou lendo o segundo volume e faz a gente refletir sobre o modo como levamos a vida. Será que o Quixote era só um sonhador ou um esquizofrênico? E todo mundo merecia ter um Sancho Pança na vida, aquela pessoa que não vai te julgar nunca e estará sempre ao seu lado.

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