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Livro discute por que há tantas falhas nos julgamentos humanos

Erros de julgamento que afetam questões cruciais da sociedade são cometidos por indivíduos que nem sequer percebem que estão se equivocando

Por Redação
17 out 2021, 07h00
Imagem mostra um martelo de juiz, de madeira avermelhada.
 (Tingey Injury Law Firm/Unsplash)
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Por que julgamentos de fatos semelhantes são tão diferentes dependendo da pessoa que está decidindo? Por que uma mesma pessoa pode julgar uma mesma questão de maneira completamente diversa de acordo com fatos aparentemente inofensivos, como a temperatura do dia, o horário ou estar ou não com fome? O livro Ruído: uma falha no julgamento humano responde a perguntas como essas, que causam problemas em diversas áreas, do direito à medicina, dos processos seletivos às avaliações de desempenho das corporações.

A obra foi escrita por três pensadores contemporâneos: Daniel Kahneman, professor de psicologia na Universidade Princeton, Prêmio Nobel de Economia e autor de Rápido e Devagar (Objetiva, 74,90 reais); Cass R. Sunstein, professor da escola de direito de Harvard e coautor de Nudge (Objetiva, 62,90 reais); e Olivier Sibony, professor de estratégia empresarial na École des Hautes Études Commerciales de Paris e autor de Você está prestes a cometer um erro terrível (Objetiva, 59,90 reais). Com base em pesquisas e estudos de caso, o trio tenta explicar por que nossos julgamentos são tão passíveis de erros e o que podemos fazer para melhorar. Leia um trecho a seguir.

TRECHO DO LIVRO

  1. Crime e ruidoso castigo

Suponha que alguém tenha sido condenado por um crime — furto, posse de heroína, agressão, assalto à mão armada. Qual será a sentença provável?

A resposta não deveria depender do juiz específico a quem o caso foi designado, do clima no dia do julgamento ou da vitória de um time de futebol no dia anterior. Seria um ultraje três pessoas similares, condenadas por um mesmo crime, receberem penas radicalmente diferentes: condicional para uma, dois anos de prisão para outra, dez anos para a terceira. E, no entanto, esse ultraje é visto em muitas nações — e não só no passado remoto, mas ainda hoje.

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No mundo todo, juízes desfrutaram por muito tempo de grande poder discricionário em relação à sentença apropriada. Em vários países, especialistas celebraram essa margem de manobra e a viram como justa e humana. Insistiam que as sentenças criminais deveriam se basear numa série de fatores, envolvendo não só o crime, mas também o caráter e as circunstâncias do réu. O ajuste individualizado estava na ordem do dia. Se os juízes fossem restringidos por regras, os criminosos receberiam tratamento desumano; não seriam vistos como indivíduos únicos, com direito a um exame detalhado de sua situação. A mera ideia de devido processo legal parecia, para muitos, pedir por uma discricionariedade judicial sem limites definidos.

Nos anos 1970, o entusiasmo universal com a discricionariedade dos magistrados começou a desmoronar por um simples motivo: a evidência alarmante de ruídos. Em 1973, um famoso juiz, Marvin Frankel, chamou a atenção para o problema. Antes disso, ele atuara como um apaixonado defensor da liberdade de expressão e dos direitos humanos, ajudando a fundar o Lawyers Committee for Human Rights (organização conhecida atualmente como Human Rights First).

Frankel podia ser feroz. E, com respeito ao ruído no sistema de justiça criminal, sentia-se ultrajado. Eis como ele descreve sua motivação:

Se um réu de roubo a banco federal fosse condenado, poderia receber uma pena máxima de 25 anos. Isso significa algo entre zero e 25 anos. E a determinação desse número, logo percebi, dependia menos do caso ou do réu individual e mais do juiz individual, isto é, das opiniões, preferências e inclinações dele. Assim, um mesmo réu em um mesmo processo podia receber sentenças amplamente diferentes, dependendo de qual juiz pegasse o caso.

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Frankel não forneceu nenhum tipo de análise estatística para sustentar seu argumento, mas ofereceu uma série de casos convincentes, mostrando disparidades injustificadas no tratamento de indivíduos similares. Dois homens, ambos sem ficha criminal, tinham sido condenados por descontar cheques falsificados no valor de 58,40 e 35,20 dólares, respectivamente. O primeiro pegara quinze anos de prisão; o segundo, trinta dias. Em processos parecidos por desvio de dinheiro, um réu tinha sido sentenciado a 117 dias de prisão, enquanto outro, a vinte anos. Enumerando diversos casos desse tipo, Frankel deplorou o que chamou de “poderes quase completamente indiscriminados e ilimitados” dos juízes federais, que resultavam em “crueldades arbitrárias perpetradas diariamente”, por ele consideradas inaceitáveis em um “governo das leis, não dos homens”.

Frankel exortou o Congresso a pôr um fim àquela “discriminação”, que foi como descreveu as crueldades arbitrárias. Com o termo, estava se referindo sobretudo ao ruído, na forma de variações inexplicáveis nas sentenças. Mas ele também estava preocupado com o viés, na forma de disparidades raciais e socioeconômicas. Para combater tanto o ruído quanto o viés, Frankel insistia que não deveriam ser admitidos diferentes tratamentos aos réus, a menos que pudessem ser “justificados por testes relevantes, suscetíveis de formulação e aplicação, com objetividade suficiente para assegurar que os resultados serão mais do que os ucasses idiossincráticos de funcionários, juízes etc. particulares”. (O termo ucasses idiossincráticos é um pouco incomum; com ele, Frankel pretendia se referir a decretos pessoais.) Mais ainda, ele defendia a redução do ruído mediante “um perfil detalhado ou um checklist de fatores que incluiriam, sempre que possível, alguma forma de graduação objetiva, seja numérica ou de outro tipo”.

Escrevendo no início da década de 1970, ele não chegou ao ponto de defender o que chamou de “trocar pessoas por máquinas”. Mas chegou perto, o que é chocante. Ele acreditava que “o estado de direito exige um conjunto de regras impessoais, aplicáveis a todos, obrigatórias tanto para juízes como para os demais”. Frankel defendeu explicitamente o uso de “computadores como auxílio a um pensamento metódico em sentenças judiciais”. E recomendou a criação de uma comissão para tratar do assunto.

O livro de Frankel se tornou um dos mais influentes na história do direito criminal — tanto nos Estados Unidos como no restante do mundo. Porém, seu trabalho sofria de certa informalidade. Era devastador, mas impressionista. Para descobrir se o problema era real, muitas pessoas em seguida conduziram diversos estudos sobre o nível de ruído nas sentenças.

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Um estudo inicial em larga escala desse tipo, dirigido pelo próprio Frankel, foi realizado em 1974. Cinquenta juízes de vários distritos deveriam sentenciar réus em casos hipotéticos resumidos em relatórios de investigação idênticos. A descoberta básica foi que “a ausência de consenso era a norma” e que as variações nas penas eram “espantosas”. Um traficante de heroína podia pegar de um a dez anos, dependendo do juiz. As penas por roubo a banco iam de cinco a dezoito anos de prisão. Em um caso de extorsão nesse estudo, as sentenças variaram de vinte longos anos de prisão e 65 mil dólares de multa a meros três anos e nenhuma multa. O mais alarmante de tudo foi que, em dezesseis de vinte casos, não houve unanimidade sequer quanto à necessidade de algum período de detenção.

Esse estudo foi acompanhado de uma série de outros, todos revelando níveis similarmente chocantes de ruído. Em 1977, por exemplo, William Austin e Thomas Williams conduziram um levantamento com 47 juízes que avaliavam cinco casos diferentes envolvendo infrações leves. As descrições dos casos incluíam resumos da informação usada pelos juízes nas sentenças efetivas, abrangendo acusação, testemunhos, ficha criminal (se houvesse), condição social e evidências de caráter. A principal descoberta foi uma “discrepância substancial”. Em um caso envolvendo roubo de domicílio, por exemplo, as sentenças recomendadas iam de cinco anos a meros trinta dias de prisão (além de uma multa de cem dólares). Em outro, envolvendo posse de maconha, alguns juízes recomendaram detenção; outros, liberdade condicional.

Em 1981 foi realizado um estudo bem mais amplo com 208 juízes federais analisando dezesseis casos hipotéticos. Os resultados principais são impressionantes:

Em apenas três dos dezesseis casos houve concordância unânime em impor algum tempo de prisão. Mesmo quando a maioria dos juízes concordou que isso era adequado, houve substancial variação na duração dos períodos recomendados. Em um processo por fraude em que o tempo médio de prisão era de 8,5 anos, a pena mais longa foi prisão perpétua. Em outro, o tempo médio de prisão era de 1,1 ano, contudo o período mais longo recomendado foi de quinze anos.

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Por mais reveladores que sejam esses estudos, que envolvem experimentos rigorosamente controlados, eles quase certamente subestimam a magnitude do ruído no mundo da justiça criminal. Juízes da vida real são expostos a muito mais informações do que a contida nas sinopses cuidadosamente especificadas, entregues aos participantes de um estudo. Parte da informação adicional é relevante, sem dúvida, mas também há ampla evidência de que informação irrelevante, na forma de fatores pequenos e aparentemente aleatórios, gera diferenças enormes nos resultados. Por exemplo, descobriu-se que os juízes apresentavam maior tendência a conceder redução de sentença no começo do dia ou após uma pausa para o lanche do que imediatamente antes dessa pausa. Juízes com fome são mais inclementes.

Um estudo envolvendo milhares de tribunais de menores revelou que os juízes tomavam decisões mais austeras na segunda-feira (e mais brandas ao longo da semana) quando seu time do coração fora derrotado no fim de semana. Réus negros sofrem um impacto desproporcional desse aumento de austeridade. Outro estudo examinou 1,5 milhão de decisões judiciais durante três décadas e chegou à mesma conclusão sobre como as preferências esportivas dos juízes influenciavam seu parecer.

Na França, um estudo de 6 milhões de decisões judiciais conduzido durante doze anos revelou que os réus recebem tratamento mais leniente em seu aniversário (desconfiamos que os juízes devem ser mais lenientes também no aniversário deles próprios, mas, até onde sabemos, essa hipótese nunca foi testada). Mesmo algo tão irrelevante quanto o clima pode influenciar o juiz. Uma revisão de 207 mil decisões judiciais de imigração ao longo de quatro anos mostrou um efeito significativo das variações diárias de temperatura: quando faz muito calor, as chances de obter asilo são menores. Se a pessoa sofre perseguição política em seu país e pede asilo a outro, é bom torcer para a audiência cair em um dia fresco e agradável.

SERVIÇO

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Ruído: uma falha no julgamento humano

Autores: Daniel Kahneman, Olivier Sibony e Cass R. Sunstein

Editora: Objetiva

Páginas: 432

Preço: 84,90 reais

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