Seis em cada dez famílias brasileiras têm dívidas. A conclusão é de uma pesquisa recente sobre endividamento e inadimplência do consumidor, conduzida pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). É o mais alto percentual desde julho de 2013 e o terceiro maior patamar da série histórica, iniciada em 2010.
Os dados são alarmantes. Isso porque a preocupação gerada pelas dívidas extrapola — e muito — o âmbito pessoal, afetando desde as relações sociais até o desempenho no trabalho.
Uma pesquisa realizada no ano passado pela Salary Finance, empresa de benefícios financeiros do Reino Unido, mostrou que o endividamento dos trabalhadores é capaz de diminuir em 15% a produtividade. Prejudicadas diretamente por essa constatação, diversas companhias passaram a dedicar mais atenção ao tema.
Entre as 150 empresas classificadas neste Guia, por exemplo, 75% realizam algum tipo de orientação sobre dinheiro aos empregados e 41% dão aconselhamento e suporte ao planejamento financeiro.
Ricardo Rocha, professor de finanças no Insper, diz que esse tipo de programa cumpre um papel importantíssimo num país com crédito fácil e falta de informação, como o Brasil. Essa combinação de fatores, aliás, tem levado as pessoas a cometer equívocos frequentes com dinheiro, tomando decisões erradas e criando dívidas desnecessárias.
“Há casos de famílias com renda de 6 000 reais e cartões com limites mensais que somam 20 000 reais; há pessoas que usam o cartão de uma bandeira para pagar o de outra; e há quem tenha poupança e mesmo assim utilize o limite do especial”, enumera o expert.
Na Kyly, indústria de roupas infantis com sede em Pomerode (SC), quando um funcionário procura a cooperativa de crédito que mantém parceria com a companhia, ele é orientado a fazer um curso com certificação de educação financeira. Se não topar, não obtém o consignado. O treinamento aos postulantes a crédito compõe o programa de educação financeira da companhia, criado em 2013.
“Percebemos que as pessoas estavam emprestando errado, poucos casos eram realmente em razão de urgência. A maioria era para consumo imediato: comprar carro, eletrodomésticos, viagens. Eles estavam fazendo dívidas e criando problemas em vez de soluções”, diz Alexandro Rodrigo de Sá, gerente de RH da Kyly.
O curso, que começou de forma presencial com palestras e reuniões, migrou para a plataforma de educação online interna para que profissionais de diferentes turnos de trabalho (são 1 487 colaboradores no total) pudessem usufruir dos ensinamentos.
Família envolvida
Um dos pontos levantados por especialistas em finanças é que, ao criar programas de educação financeira, as organizações procurem incluir a família na ação. Afinal, boa parte do quadro é composta de trabalhadores casados, que têm filhos e companheiros — e não por jovens que moram com os pais. “Não dá para ignorar esse fato no processo educativo”, diz Fábio Gallo, professor de educação financeira na Fundação Getulio Vargas.
Atenta a essa dinâmica, a plataforma que a Kyly disponibiliza tem aulas focadas em planejamento familiar. Ali ensina-se, entre outras coisas, a fazer e a manter uma planilha de controle e acompanhamento de gastos.
“A ideia é que nossos colaboradores levem o conhecimento para dentro de casa e influenciem quem está próximo a lidar melhor com o dinheiro”, diz Alexandro. Os números mostram que o programa é exitoso. “Chegamos a ter mais de 200 pessoas com empréstimos, por problemas variados, sobretudo dívidas no cartão de crédito e limite especial. Ensinamos que é possível planejar para pagar juros menores e parcelas mais em conta”, diz o gerente de RH.
Hoje, há apenas 62 funcionários com crédito consignado na Kyly e, para o executivo, a queda no número de endividados tem a ver com o aprendizado que o programa gera.
“Houve casos de pessoas que passaram pelo treinamento e desistiram do empréstimo, pois viram que fariam dívidas desnecessárias. Isso é algo a comemorar. Quando param de pensar em problemas financeiros, os trabalhadores atuam melhor. A agonia atrapalha a vida pessoal e profissional.”
Na visão de Ricardo, do Insper, iniciativas corporativas como essa ajudam na redução de danos inerentes a quem está no vermelho. “No desespero, muitos recorrem ao limite do especial ou mesmo a agiotas, com juros altos. Isso acontece por falta de orientação.”
Saúde financeira
Na farmacêutica MSD, multinacional americana com subsidiárias em mais de 70 países e dez presenças neste Guia, o apoio financeiro vem junto com um pacote de outros auxílios num programa global chamado Resources for Living (“Recursos para viver”, na tradução do inglês).
A ação, que há três anos disponibiliza um pacote de serviços para o bem-estar de empregados, oferece apoio jurídico, psicológico e financeiro. “Trabalhamos com saúde e acreditamos ser nossa obrigação cuidar da saúde física, mental e financeira de colaboradores e dependentes”, diz Camila Zanatta, gerente de remuneração e benefícios.
Fábio, da FGV, percebe um aumento no interesse de empresas por esse tipo de prática. Para ele, essa crescente preocupação faz parte de um movimento mais abrangente dentro das organizações, que buscam ofertar benefícios integrais no intuito de engajar, motivar e, no limite, economizar lá na frente com um funcionário que vai adoecer e onerar o plano de saúde (hoje segundo maior gasto das organizações, atrás apenas da folha de pagamentos).
A cesta de auxílios nesse sentido é extensa: atividades físicas, meditação, aulas de culinária, palestras e workshops.
No fundo, o mundo corporativo percebeu que programas de bem-estar e qualidade de vida precisam abordar questões relacionadas a finanças pessoais. “Funcionários endividados podem trazer muita dor de cabeça para as empresas. Além da queda de motivação e de produtividade, há até mesmo casos de corrupção motivados por problemas financeiros. É claro que é injustificável, mas o desespero gera um risco”, diz Fábio.
Por essas e outras, a plataforma Resources for Living, da MSD, está disponível 24 horas por dia e é acessível por computador, celular e telefone via 0800. O empregado, ou seu familiar, entra em contato, expõe o problema e após uma triagem é auxiliado por um consultor especializado no assunto exposto (tudo de forma reservada).
As conversas acontecem por teleconferência ou de forma presencial nas unidades da MSD. Depois, é criado um plano de ação e acompanhamento específico para quem solicitou a ajuda.
Em atendimentos mais complexos, de dívidas provenientes de execuções judiciais ou de disputas familiares, há ainda orientações multidisciplinares, que envolvem profissionais como advogados, psicólogos e consultores financeiros.
“Tivemos um caso emblemático, de um funcionário com alto gasto mensal em medicamentos para um familiar gravemente doente. Ele queria saber como se planejar para ter o dinheiro dos remédios disponível”, diz Camila.
No ano passado, o serviço da MSD teve 373 acessos, contabilizando todas as formas de auxílio (não há dados de quantos atendimentos foram voltados para questões relacionadas exclusivamente a dinheiro).
Grande vilão
De acordo com a pesquisa da CNC citada no início desta reportagem, as faturas do cartão de crédito são a maior causa de problema para 79,5% das famílias que se encontram no vermelho, superando todas as demais modalidades, como cheque especial, carnês de lojas, empréstimos pessoais e prestações de financiamentos. Executivos de RH ouvidos por VOCÊ S/A corroboram esse dado.
Na percepção deles, o cartão de crédito está no topo da lista de razões pelas quais os profissionais pedem socorro aos empréstimos consignados. Em casos assim, o cálculo do crédito deve se basear no rendimento de quem busca o auxílio, raramente ultrapassando um montante que supere três vezes o salário.
Essa aparente limitação, na verdade, é um dispositivo fundamental para que o devedor honre o compromisso sem criar um novo rombo na conta bancária.
E se engana quem supõe que educação financeira sirva apenas para pessoas que estejam endividadas ou que não consigam controlar os gastos. Ela é um processo formal no qual as pessoas desenvolvem a capacidade e a confiança para mapear oportunidades, tomar riscos e fazer escolhas conscientes.
Num país com carência de conhecimento monetário, ensinar a população a lidar com os próprios recursos se torna um papel também da iniciativa privada. “Sou favorável ao ensino de finanças tanto nas escolas quanto nas empresas. Esses programas dão insumos para as pessoas tomarem decisões melhores”, diz Ricardo, do Insper.
Lembrando que o Brasil ocupa a 74a posição entre as 144 nações que compõem o ranking global que avalia o nível de educação financeira da agência de classificação de risco Standard & Poor’s.
Por isso, a defesa é que as companhias invistam em políticas que foquem a conscientização dos funcionários e a prevenção de dívidas. Nesse sentido, as Melhores Empresas para Trabalhar extrapolam o empréstimo consignado. Em muitas delas, os trabalhadores têm a possibilidade de aprender a planejar o uso do 13o salário, a provisionar gastos regulares, como IPVA, IPTU e matrícula escolar, e a investir nos ativos que mais lhes convêm. Afinal, a melhor receita para a saúde financeira é ter planejamento e conhecimento.
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