Em outubro de 2019, o câncer virou assunto do noticiário após o prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), ter sido diagnosticado com um tumor na região do estômago. Mesmo durante a internação e as sessões de quimioterapia, o político optou por manter a rotina profissional, participando de reuniões e despachando do hospital. Lidar com essa doença no mercado de trabalho já é uma realidade no Brasil — e no mundo.
Em 2018, o câncer foi a segunda principal doença causadora de mortes no planeta, perdendo apenas para os problemas cardiovasculares. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 9,6 milhões de pessoas morreram por causa desse mal. No Brasil, a situação também é preocupante. No biênio 2018-2019 surgiram 600 000 novos casos no país, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), que também estima que, em dez anos, a neoplasia poderá se tornar a principal causa de mortes por aqui.
Segundo o Observatório de Oncologia, plataforma de análise de dados criada pela Associação Brasileira de Leucemia e Linfoma (Abrale), os óbitos causados por tumores vão superar as doenças cardiovasculares em 2029, com uma taxa de 115 mortes por 100 000 habitantes, ante a atual de 113 por 100 000 habitantes.
Mesmo sendo uma doença altamente fatal, o avanço da medicina tem aumentado o número de sobreviventes. De 2010 a 2014, por exemplo, a média de cura para o câncer de próstata foi de 92%; para o de mama, de 75%; e para o de colo de útero, de 60%. E muitos desses pacientes que se curam enfrentam um desafio que vai além da saúde: a permanência no mercado de trabalho durante e depois do tratamento — porque, diferentemente de Covas, isso nem sempre é fácil.
Uma metanálise realizada em 2017 pelo Coronel Institute of Occupational Health, em Amsterdã, na Holanda, com 36 estudos e mais de 20 000 sobreviventes do câncer, mostra que 34% dos pacientes curados não conseguem se recolocar por causa de sequelas físicas e emocionais. Comparado com os 157 603 participantes saudáveis do grupo de controle, os enfermos corriam 1,37 vez mais riscos de desemprego.
Além disso, as taxas de desocupação aumentam em casos de câncer de mama (36%), gastrointestinal (49%) e no aparelho reprodutor feminino (49%), uma vez que o tratamento tende a ser mais rigoroso e extenso. No Brasil não existe uma pesquisa desse tipo, e nossa legislação também não garante estabilidade de emprego para pacientes com câncer. Há o Projeto de Lei no 8.057/2017, do senador Eduardo Amorim (PSDB-SE), que estabelece estabilidade de no mínimo um ano, mas está parado na Câmara dos Deputados.
Falta apoio
Muitas companhias, por outro lado, ainda não estão preparadas para ajudar funcionários que tenham doenças graves. O levantamento “Como as empresas lidam com o câncer?”, realizado no ano passado pela Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), em parceria com o movimento sem fins lucrativos Go All, indica que, do ponto de vista dos gestores, as preocupações mais comuns são a dificuldade de oferecer apoio ao funcionário enfermo (68%) e a reintegração do sobrevivente de câncer ao local de trabalho (35%).
Embora 58% das empresas tenham campanhas de prevenção ao câncer e divulguem informações sobre a doença, as práticas tendem a ser genéricas e desarticuladas, tanto que só 9% têm ações estruturadas de prevenção, acompanhamento e tratamento. Entre os 20% que de fato possuem programas na área de saúde, a oferta se concentra em serviços não diretamente relacionados ao câncer, como check-ups (73%) e educação para a saúde (72%). “A incidência de câncer cresce, mas as atividades preventivas e de retenção não aumentam na mesma proporção”, diz Marina Miragaia, diretora médica da Saúde Concierge, companhia de gerenciamento de saúde. “A empresa é corresponsável pela saúde do empregado.”
A importância da ocupação
Para quem está em tratamento, ter o amparo da empregadora é algo fundamental. “No processo de adoecimento há uma quebra de rotina. Quando esse paciente volta para o dia a dia, tem a sensação de controle e de continuidade”, diz Julia Schmidt Maso, psicóloga do Hospital Sírio-Libanês. “Além disso, a doença pode deixar a pessoa com a aparência frágil, ao contrário do que ela quer mostrar no trabalho. Quanto mais a empresa tiver um olhar para o funcionário, mais produtivo, contente e satisfeito ele estará.”
Outro motivo para que os pacientes precisem do emprego é o custo financeiro de uma doença como essa, que demanda alto investimento. Tanto que a renda de quem adoece costuma cair. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Provokers, a pedido da farmacêutica Pfizer, os ganhos de mulheres que enfrentaram o câncer de mama diminuíram 38% entre as usuárias da rede pública de saúde. Entre as pacientes de rede privada a queda foi de 15%.
Para minimizar essa preocupação com as finanças, a Edenred Brasil, detentora da marca Ticket, oferece um seguro de 35 000 reais a todos os funcionários que são diagnosticados com câncer. “Há muitos gastos com medicamentos e tratamentos que não são cobertos pelo plano de saúde. A pessoa pode usar esse valor da maneira que achar melhor, sem precisar prestar contas para a empresa”, afirma José Ricardo Amaro, diretor de recursos humanos da companhia. A multinacional francesa emprega 2 000 pessoas no Brasil e, no ano passado, registrou dez casos de funcionários com câncer.
Além do auxílio financeiro, a Edenred oferece apoio psicológico 24 horas por meio da central Conte Comigo; enfermeira no escritório dedicada a ajudar na intermediação entre o plano de saúde e o hospital para agilizar o tratamento; e ambulatório para exames de rotina e campanhas de prevenção. Se um funcionário acionar o RH para avisar que está doente, o protocolo é o mais discreto possível em respeito ao direito ao sigilo médico e para que a relação com os colegas não seja afetada. “Quando a pessoa autoriza divulgar a situação, a gente orienta o gestor sobre manter um relacionamento mais próximo, passar segurança em relação à estabilidade profissional e rever as demandas do dia a dia”, explica José Ricardo.
A revisão das tarefas e da rotina de quem está com câncer, aliás, é essencial. Na pesquisa da ABRH, quase 60% dos respondentes acreditam que a flexibilização nas condições de trabalho é a iniciativa mais importante para quem enfrenta a doença. “Tem de se perguntar o que a empresa pode fazer para facilitar a vida desse funcionário. É possível negociar home office, jornada flexível, retorno mais lento às atividades, e oferecer alternativas de deslocamento e acompanhamento psicológico”, afirma Ado de Castro Bechelli, médico da equipe da consultoria Willis Towers Watson.
Sensibilizando a liderança
Na pesquisa da ABRH há um dado que chama a atenção: 42% das organizações orientam os gestores para lidar com casos de câncer em suas equipes. A Unilever faz parte desse percentual. A companhia realiza treinamentos com a liderança sobre temas que fogem do âmbito de trabalho — entre eles o câncer. Nos workshops, os chefes aprendem como devem lidar com funcionários doentes e entendem a importância do respeito ao sigilo médico. “Temos dois treinamentos, um EAD de 4 horas e outro presencial, que acontece a cada dois anos, além de um processo de comunicação permanente com os líderes”, diz Elaine Molina, diretora de saúde ocupacional da Unilever.
A empresa também procura investir no apoio psicológico dos empregados doentes. Todos aqueles que acionam a equipe de gestão de pessoas para informar sobre o diagnóstico de neoplasia são encaminhados para o Programa Crescer, um projeto de apoio psicológico, jurídico, financeiro e de assistência social disponível gratuitamente para os funcionários. “Por meio de um 0800 e um aplicativo, os empregados e seus dependentes contam com atendimento especializado nessas áreas 24 horas por dia, sete dias por semana, e os casos mais complexos são encaminhados para atendimento presencial”, diz Elaine.
Mais acolhimento
Outra questão delicada para os profissionais com essa doença é equilibrar a rotina de tratamento com o trabalho. Isso foi citado como o maior desafio numa pesquisa sobre câncer de mama feita pelo LinkedIn em parceria com a Fundação Laço Rosa. As entrevistadas ainda apontaram as questões financeiras e a falta de políticas de apoio aos pacientes na empresa como temas que exigem atenção.
Como a Avon tem um quadro de empregados e revendedores majoritariamente feminino (61% dos funcionários são mulheres), o câncer de mama é uma doença que está em seu radar desde a década de 60. “Fazemos pesquisas com as consultoras e o câncer de mama sempre aparece como um tema de interesse. Por isso, investimos em ações de educação e conscientização”, afirma Daniela Grelin, diretora do Instituto Avon.
O tema é abordado em campanhas internas, no programa de integração de novos funcionários e em cursos de formação de liderança. Para incentivar a prevenção, a Avon leva uma carreta para os escritórios da empresa durante a campanha do Outubro Rosa para que as funcionárias façam exames de mamografia e ultrassonografia no horário de expediente. “Na equipe de RH, temos uma assistente social que acolhe mulheres com câncer de mama que acabaram de receber o diagnóstico”, diz Daniela. Cabe a essa profissional orientar sobre o atendimento psicológico, jurídico e financeiro e encaminhar a paciente ao Instituto Avon.
Além disso, a multinacional oferece estabilidade profissional durante o tratamento. Ainda há subsídio de 100% dos medicamentos que não são previstos pelo SUS, complemento salarial de seis meses quando a funcionária está afastada pelo INSS e isenção da coparticipação do plano de saúde para consultas e exames.
O tratamento de câncer costuma ser longo e complexo, por isso as empresas — e o RH — têm um papel tão importante. E fazer isso é benéfico para os dois lados, como explica Luciana Landeiro, oncologista da equipe do Núcleo de Oncologia da Bahia (NOB), do Grupo Oncoclínicas: “O apoio do empregador é o fator que mais tem impacto na volta do paciente ao mercado de trabalho. E, ao mesmo tempo, se a empresa não olha para essa população crescente de pessoas com câncer, acaba sofrendo um impacto econômico negativo.”
* Esta matéria foi publicada na edição 65 da revista VOCÊ RH