Esta reportagem foi publicada na edição 71 de VOCÊ RH.
Nos primeiros meses de isolamento social, os RHs testemunharam um comportamento padrão entre os funcionários: a corrida para trocar o vale-refeição pelo vale-alimentação. Afinal, ninguém saía de casa para almoçar. Sem necessidade de se deslocar, incentivos como o vale-combustível e o estacionamento grátis no prédio da empresa também deixaram de ser atraentes. Em contrapartida, o plano de saúde foi ainda mais valorizado — uma pesquisa da consultoria de recrutamento Robert Half mostrou que esse é o benefício de maior importância para os empregados no pós-pandemia.
Todo esse contexto mostrou algo que, às vezes, passa despercebido: o valor não financeiro de um benefício pode mudar conforme a situação vivida pelos empregados — seja coletiva, seja individualmente. É por isso que começa a surgir a tendência de flexibilizar os benefícios para torná-los mais personalizados. A proposta não é exatamente uma novidade, mas as necessidades durante a quarentena reforçaram um movimento que algumas empresas estavam promovendo por causa do aumento da valorização da diversidade e do bem-estar de seus empregados.
“Há hoje uma força de trabalho muito mais diversa e é preciso ser capaz de servir às diferentes demandas, desde questões geracionais até de estilo de vida. Então o pacote de benefícios passa a suprir essas necessidades”, diz Tatiana Iwai, professora de comportamento e liderança no Insper.
Mas um bom programa vai além da troca do VR pelo VA. Em geral, ele funciona como um menu de opções: cada benefício tem uma pontuação ou peso, e o funcionário monta sua cesta conforme suas preferências e necessidades, desde que obedecido o teto de valor ou de pontuação. “É fantástico, mas há 20 anos tem baixíssima prevalência”, diz René Ballo, líder de benefícios na consultoria Willis Tower Watson (WTW). A empresa, inclusive, apontou em seu levantamento sobre o tema feito em 2019 que, embora uma em cada três companhias pretendam implementar pacotes flexíveis, apenas 9% já possuem ações em curso. A baixa adesão pode ser explicada pelo alto investimento — não necessariamente financeiro. “Há custos indiretos, como toda a energia que a área de recursos humanos irá despender com comunicação, educação, planejamento e gerenciamento do programa”, diz René.
Desenho detalhado
Giselly Viveiros, gerente sênior de remuneração e benefícios da Danone, viveu essa experiência entre março de 2019, quando abriu concorrência para consultorias em flexibilidade de benefícios, e março de 2020, quando finalizou o projeto BenVocê, voltado para 4.500 funcionários e que começou a rodar em agosto. “É preciso desenhar muito bem. Sentei com o jurídico e o tributário para vermos ponto a ponto o que entraria de benefícios e de que maneira. O salário é tributável, já o benefício não é. Então não poderíamos gerar impostos sobre isso”, explica. “As liberações que antes eram em massa agora são praticamente individuais.” Durante o período de implementação do projeto, o RH ficou dez dias integralmente dedicado a atender aos pedidos e dúvidas dos funcionários.
O BenVocê, como grande parte dos programas de benefícios flexíveis, funciona por um sistema de pontuação. Cada funcionário tem direito a uma cota de pontos, que varia conforme o número de dependentes legais e a elegibilidade dos benefícios. Uma pessoa solteira e sem filhos, por exemplo, tem de 1.000 a 6.000 pontos para distribuir. O funcionário pode receber de 350 a 900 pontos a mais a cada dependente legal, a depender do padrão de assistência médica, que varia conforme o cargo.
Respeito e abrangência
Na Serasa Experian, a prática entrou em vigor em 2017, depois que uma pesquisa interna mapeou que os empregados — que hoje somam 2.500 pessoas — gostariam de ter mais personalização em suas cestas. No início, o foco foi em benefícios tradicionais, como os de saúde e alimentação, e, depois de o programa estar maduro, entraram questões de educação e previdência privada, por exemplo. O programa também funciona por meio de pontos que podem ser distribuídos para opções sob demanda. “É uma mensagem bacana do empregador, pois mostra respeito aos funcionários”, diz Flavio Balestrin, vice-presidente de recursos humanos da Serasa Experian. Mas ele alerta: é necessário acompanhar os indicadores de perto. “Se a adesão é baixa, é preciso ver se faz sentido, porque é um trabalho que envolve muitos parceiros”, explica o executivo.
Além de mais engajamento, outra motivação das companhias que flexibilizam seus pacotes é atender às demandas de times heterogêneos. “Numa empresa com perfis tão diferentes, um pacote único não faz sentido. Fala-se tanto em escutar e ser ágil com o consumidor, temos que fazer isso com nosso time”, diz Sandro Bassili, VP de pessoas e assuntos institucionais do Grupo Boticário.
A fabricante de produtos de beleza, que tem um quadro de 12.000 pessoas, implantou em outubro seu programa de benefícios flexíveis. Ele será válido para todos os trabalhadores da companhia: operadores de fábrica, vendedores e time administrativo. Chamada de Cesta Benflex, a iniciativa engloba questões como plano de saúde para pets, viagens, compra de equipamentos para home office, bolsa-educação e auxílio em ópticas.
Sinais de alerta
O empregador precisa ficar de olho em aspectos jurídicos na hora de flexibilizar as cestas. Vale lembrar, por exemplo, que alguns acordos trabalhistas exigem benefícios obrigatórios. Por isso, é preciso estabelecer os que são fixos e os que podem variar — e aqui entram ofertas que nem sempre são vistas como essenciais, mas que têm alto valor agregado, como a previdência privada.
Outro ponto de atenção é a gestão dos fornecedores. Com a pulverização dos benefícios, o poder de barganha da empresa diminui e o RH precisa se dedicar para chegar a uma boa negociação.
“Os contratos e acordos são diferentes com cada fornecedor, incluindo prazos para renovações ou alterações. Nem as operadoras de saúde estão preparadas para benefícios flexíveis”, diz Gustavo Vitti, vice-presidente de pessoas do iFood, que adotou o modelo em 2018 e hoje oferece o programa para 2.500 funcionários.
Por isso a eleição — ou a modificação — da cesta, em geral, tem períodos para ocorrer (a cada seis meses ou a cada ano), com algumas poucas situações em que é possível realizar alterações, como uma promoção ou a entrada de um novo dependente.
Foco na comunicação
Tudo o que mexe no pacote de remuneração gera dúvidas e inseguranças. Por isso a companhia tem que se preparar para comunicar as mudanças com muita transparência e agilidade. Intranet, newsletter, posts em redes sociais internas, lives com liderança e manuais de uso ajudam.
Além disso, a comunicação também auxilia o empregado a entender seu protagonismo e sua autonomia como beneficiário. “A principal vantagem desse tipo de programa é que o modelo privilegia o momento de vida de cada um e requer que todos se apropriem do programa e de suas escolhas”, diz Kelly Cristina Nunes, gerente sênior de pessoas da Vivo, que flexibilizou a cesta para os 33.000 funcionários. E ela destaca mais um bom motivo para aderir a essa prática: o aumento do reconhecimento da companhia como uma boa empregadora. “Os funcionários veem o programa como um valor.” Bom motivo para colocar essa política no radar.