stabelecer a diferença entre sofrimento e transtorno mental e entender a importância de encontrar escuta e apoio para nossas dores são práticas fundamentais, ainda mais nesses tempos difíceis. É o que mostra o relatório Alerta Amarelo — Um Panorama da Saúde Mental do Trabalhador Brasileiro e Perspectivas de Prevenção e Enfrentamento, que pode ser baixado gratuitamente aqui. Leia um trecho da análise, organizada pela pesquisadora Carla Furtado, diretora do Instituto Feliciência:
É preciso estabelecer a diferença entre sofrimento e transtorno mental. A pandemia fez as pessoas sofrerem mais, por razões como luto pessoal e coletivo, medo da contaminação e da escassez e distanciamento social. “Há pessoas em sofrimento que ainda não receberam assistência, além de parecer que o sofrimento acabou junto com as medidas mais restritivas da pandemia. Temos uma demanda reprimida para estourar a qualquer momento”, afirma a Dra. Maria Lívia Tourinho Moretto, que compõe o corpo docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e coordena o Laboratório de Pesquisas “Psicanálise, Saúde e Instituição” do IPUSP. Sob a luz da psicanálise, o sofrimento é uma expressão subjetiva que traz consigo uma demanda de reconhecimento. As experiências clínicas e de pesquisas demostram que toda vez que o sofrimento não é compartilhado ou cada vez que é silenciado tende potencialmente a se transformar em doença. “Durante a pandemia muitas pessoas sofreram em silêncio, não apenas pelo confinamento, mas principalmente pela dificuldade de partilha e pela falta de escuta qualificada. E a maneira que o psiquismo encontra de traduzir o sofrimento silenciado é pela vertente do adoecimento, visto que carrega uma espécie de garantia de que no discurso médico, esse sofrimento possa ser validado.
O problema é que nem sempre o discurso médico consegue localizar no sintoma a causa. Muitas vezes, sintomas são vistos como origem e não consequência”, pontua Dra. Maria Lívia. “Precisamos prestar atenção na expressão de cansaço das pessoas”, segue a pesquisadora. Ela explica que embora o cansaço tenha uma versão psicológica significativa de atender à necessidade humana de gastar energia psíquica para se livrar das angústias da morte que tanto assombraram durante a pandemia, no momento esse cansaço provoca uma ruptura entre as percepções de tempo e espaço – o que a psicanálise compreende como uma espécie de desintegração. Dra. Maria Lívia vai além: “Estar sobrecarregado parece fazer frente a diferentes desafios, entre eles o medo da escassez, o preenchimento de espaços internos vazios do ponto de vista psíquico, a urgência da vida que nunca se mostrou tão tangível, mas principalmente, a compreensão perigosa de que os mais seguros são os que melhor se adaptam”. Levar a teoria evolucionista ao extremo pode sustentar no inconsciente coletivo a ideia de que se adaptar em ritmo frenético às disrupções do nosso tempo seja a forma de permanecer vivo e triunfante. Esse entendimento pode incorrer em uma adaptabilidade perigosa visto que desconsidera a saúde como premissa para o funcionamento humano em uma vida significativa.
“A sociedade produtiva está sendo esfacelada pela disponibilidade full time”, afirma Dr. Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Para ele, trabalhar no extremo da capacidade é inatural. “Vemos um estímulo direto para que as pessoas pensem as próprias vidas como se fossem empresas, como se fossem seres inanimados”, salienta. De acordo com Dr. Dunker, a perda da separação entre vida pública e privada, que já era tênue, nos fez migrar da sociedade do cansaço para a sociedade da ruptura: “Há uma ideia que ultrapassa a ousadia humana de que o tempo todo a distribuição atencional e o engajamento das funções psíquicas possam ser explorados ao máximo. Soa altruísta superar limites indefinidamente”.
Entre as hipóteses levantadas pelos especialistas ouvidos está a percepção de que nem todos os trabalhadores são forçados a uma jornada estendida, ao contrário, muitos não conseguem se desvencilhar da atividade profissional. “Em alguns casos é pelo medo de perder o que se tem, eco do que foi vivido nas medidas mais duras da pandemia”, esclarece Dr. Dunker.
Depois das crises ocasionadas pela pandemia, é possível que o indivíduo se sinta devedor. “É como se devêssemos oferecer sacrifício até as últimas gotas de suor pela oportunidade de permanecermos vivos. E se empregados, o preço sobe ainda mais”, avalia o pesquisador. Entre suas provocações está a compreensão da anomia social, ou seja, da ausência de normas ou o desvio das leis naturais. “As pessoas se envergonham da própria humanidade. É proibido se cansar e ter limites. Nos tornamos uma fonte de recursos inesgotáveis. Isso é ilusório e altamente perigoso”. Os especialistas apontam para um suicídio lento, expressão usada para descrever uma dinâmica de desumanização que favorece a ruptura psíquica.