Com certeza você conhece alguém assim: mal o salário entra na conta, ele evapora. O dinheiro acaba antes do fim do mês, e a solução, muitas vezes, é recorrer a empréstimos com a família e amigos – pois o sujeito não tem mais crédito no mercado. E isso acontece não porque ele seja um gastão – para gastar é preciso ter grana, o que não é o caso aqui. O problema é que boa parte do salário dele vai direto para o pagamento de dívidas.
Essa convicção de que você conhece uma pessoa com esse problema é porque a grande maioria sofre com isso. No país, 78,8% das famílias estão endividadas, como mostram os dados de junho da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic). E quase 30% de sua renda está comprometida com dívidas.
Há casos piores: os superendividados, pessoas que se tornam inadimplentes porque não conseguem, ao mesmo tempo, pagar essas dívidas e dar conta das despesas pessoais. Estamos falando da escola dos filhos, da comida na mesa, dos gastos com farmácia… a vida como ela é. Cerca de 70 milhões de brasileiros estão nessa situação – que tem consequências para seu bem-estar e o dia a dia no trabalho.
Segundo uma pesquisa encomendada pelo Serasa, 78% dos inadimplentes têm surtos de pensamentos negativos por causa de compromissos que já passaram do vencimento; 61% têm crises de ansiedade ao pensar nas dívidas; e 74% relatam dificuldade de concentração para realizar tarefas diárias – principalmente as atividades relacionadas ao trabalho. E isso, claro, é um transtorno para o profissional, mas também para a empresa.
Um estudo britânico de 2021 apontou os riscos para a organização de ter um profissional sempre com a cabeça nas contas. Ele tem uma queda de 29 dias de produtividade no ano (é como se passasse um mês sem trabalhar para a empresa, porque está ocupado lidando com seus problemas financeiros). Essa pessoa também está sempre de olho em empregos que paguem mais, para melhorar sua situação, o que aumenta o turnover e os custos do negócio com recrutamento. Mais recrutamento, mais gente nova, mais custos também com treinamento.
Esse endividado acaba sendo um problema para seu gestor e para o ambiente corporativo. Ele tem uma probabilidade 7,5 vezes maior de perder qualidade nos trabalhos diários, e 8,7 vezes maior de nem conseguir terminar as tarefas pelas quais é responsável. Ou seja, ele se torna um profissional pior. E acaba contaminando o ambiente também.
Tensão financeira
Ainda segundo o mesmo estudo, uma pessoa preocupada com suas dívidas tem um risco 6,5 vezes maior de ter conflitos de relacionamento com colegas e gestores.
Esse comportamento está ligado a um conjunto de emoções chamado “tensão financeira”. Envolve culpa, vergonha, sensações de inadequação e fracasso. Sentimentos que afetam negativamente a autoconfiança e a autoestima do profissional. E ele pode querer descontar essa negatividade na empresa. Ou no chefe, ou no colega mais próximo.
Como achar um endividado
–
Claro, um comportamento disfuncional de alguém da equipe pode ter motivos variados. Pode vir de problemas de relação na família ou mesmo por um descontentamento no trabalho. Mas o endividado emite alguns sinais que podem ser percebidos, principalmente pelas pessoas mais próximas.
Geralmente, ele hesita em almoçar com os colegas. Prefere economizar o vale-refeição para gastar com a família. Ele também evita atender chamadas no celular (pode deixar no silencioso o tempo todo) para fugir das ligações de cobrança. Está sempre com um cartão de crédito novo, porque o anterior já atingiu o limite de crédito – e ainda usa um cartão para pagar a fatura do outro.
Se ele chega a reclamar das dívidas com os colegas mais próximos e é questionado sobre quanto deve ao todo… não faz a menor ideia. E ele não está mentindo. Os superendividados vivem em negação desse estado, um mecanismo de defesa mental que acaba fazendo com que gaste o que não pode (como colocar a filha na natação quando mal tem dinheiro para pagar os custos dela na escola).
Impactos na saúde
–Todos esses sentimentos negativos vão se acumulando e derivam para problemas de saúde física e mental. Transtornos que vão afetar seu prazer de viver e sua alegria com o trabalho – e que não podem ser ignorados pela empresa.
De acordo com a pesquisa National Debt Relief, dos Estados Unidos, profissionais com problemas financeiros perdem até 200 horas de sono por ano, olhando para o teto preocupados com suas dívidas. E a insônia nem é a maior das questões de saúde relacionadas ao endividamento. Segundo a Associação Americana de Psicologia, o estresse financeiro está associado a uma série de doenças e distúrbios mentais, como pressão alta, diabetes, transtornos alimentares, uso abusivo de álcool e drogas, depressão e até problemas cardíacos.
E o pior é que essas pessoas provavelmente não vão buscar ajuda. Segundo o mesmo estudo, os muito endividados, por todo o conjunto de problemas acima, têm menos condições de cuidar de si mesmos e de procurar atividades que reduzam essa condição. Pelo contrário: dois em cada três respondentes da pesquisa disseram que pararam de fazer algo de que gostavam por conta do estresse financeiro. A falta de grana até transforma sua noção de férias. Afinal, a pessoa não tem dinheiro para viajar, para fazer passeios interessantes (que não sejam gratuitos), para comprar livros e todo tipo de consumo que se faz quando temos bastante tempo livre.
Essa ausência de autocuidado inclui se alimentar mal, não ter ânimo para atividades físicas e preferir o consumo de bebidas e substâncias ilícitas como forma de relaxamento – justamente opções que o afastam temporariamente da realidade.
A decadência progressiva na saúde dos indivíduos tem consequências bem visíveis para a empresa: aumento do absenteísmo e dos custos com convênio médico. Lembrando: não estamos falando de um caso isolado na empresa. Só cerca de 20% das pessoas não têm dívidas, então pode apostar que há muita gente na equipe cuja tensão financeira individual é capaz de afetar o coletivo – e influenciar os resultados do negócio.
Educação para a gestão de dívidas
É responsabilidade do RH e das lideranças, portanto, identificar os casos mais críticos e apoiá-los. Paralelamente, também podem promover uma série de iniciativas que tanto ajudem as pessoas a sair dessa areia movediça quanto evitem que elas entrem na bola de neve. Ações que terão um impacto positivo em tanta gente desesperada.
Para o coletivo da empresa, o mais indicado é promover a educação financeira entre os funcionários. Uma iniciativa que precisa ter constância e contar com a adesão dos líderes.
Um exemplo de informação que deveria chegar a todos: pessoas disciplinadas com dinheiro devem seguir um modelo de 50-30-20. Thiago Ramos, gerente da Serasa, explicou os números numa reportagem sobre superendividados na Você S/A: “Isso significa que 50% do seu dinheiro mensal deveria ir para gastos fixos, 30% para gastos eventuais, incluindo lazer, e 20% deveria ser guardado, para uso somente em caso de uma necessidade imprevista”.
Essas informações também devem incluir educação para a gestão de dívidas. O funcionário deve saber, por exemplo, que o primeiro passo para sair do fundo do poço é ver a profundidade dele: colocar numa planilha todas as dívidas (sim, acabar com a negação), os gastos fixos e eventuais. Aí, sim, ele terá um ponto de partida para começar a fazer sacrifícios. Analisar o que pode cortar entre os gastos fixos e eventuais. Pois é, se mantiver o estilo de vida, nunca vai conseguir pagar as dívidas.
O RH também pode procurar uma assessoria que ajude os interessados, orientando-os individualmente sobre como lidar com as dívidas. Esse profissional lhes mostraria quais débitos pagar primeiro, que programas do governo podem ajudá-los a melhorar a situação, como trocar empréstimos de juros altos por opções de juros menores.
A chave é que os colaboradores percebam, de fato, que seus problemas financeiros têm impacto em sua performance no trabalho – a não ser que eles os encarem de frente. Quando a empresa os ajuda a sair dessa situação, promove uma transformação completa na vida do indivíduo, que vai da sua saúde física à sua felicidade no dia a dia. Além de tirar esse profissional do poço em que ele se meteu, a organização garante as melhores condições para uma conquista preciosa: recuperar o melhor das habilidades desse talento – que já foi um ativo valioso no escritório.
O RESGATE
Um bom programa de bem-estar financeiro que ajude profissionais endividados deve trazer as orientações abaixo.
- Como negociar com os credores.
- Métodos para começar a pagar o que deve.
- Como criar um plano de redução da dívida.
- As diferenças entre os débitos e quais devem ser priorizados.
- Quais custos devem ser cortados.
- Técnicas de diminuição do estresse.
- Sugestões para o autocuidado.
- Como ter foco no trabalho apesar dos problemas pessoais.
Este texto faz parte da edição 93 (agosto/setembro) da Você RH. Clique aqui para conferir outros conteúdos da revista impressa.