e 2018 a 2022, a quantidade de caixas de um medicamento que estimula o sistema nervoso central, o dimesilato de lisdexanfetamina, vendidas pelos laboratórios para as farmácias passou de 618 mil para 1,4 milhão. A informação é do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) e soma as apresentações do produto nas concentrações de 30, 50 e 70 miligramas. A substância, princípio ativo do Venvanse, faz parte de um grupo com outros dois remédios para o tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH): a Ritalina e o Concerta.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que está impedida de fornecer números relativos à comercialização do Venvanse, mas dá para ter uma ideia da procura: o medicamento chegou a sumir das prateleiras das farmácias de São Paulo e do Rio de Janeiro em meados de 2022. Como os demais, ele só pode ser vendido mediante receita amarela, pelo risco alto de indução de tolerância e dependência. No início do ano passado, a farmacêutica Takeda, que adquiriu o produto com a compra do laboratório Shire em 2018, emitiu até um comunicado orientando a utilização correta.
Mas esses estimulantes vêm sendo usados indevidamente, por quem não tem nenhum transtorno. É o mesmo mal que atinge outra classe de fármacos: os hipnóticos chamados de drogas-z, com destaque para o hemitartarato de zolpidem, indutor do sono presente no mercado brasileiro desde o final dos anos 2000. Indicado para o tratamento de curto prazo (no máximo quatro semanas) da insônia, o medicamento virou moda e tem sido consumido como balinha.
Para comprá-lo é preciso apresentar a receita branca em duas vias para concentrações até 10 miligramas ou a azul, pelo risco moderado de dependência, para as versões de 12,5 miligramas. A comercialização regular da substância no varejo farmacêutico passou de 10,5 milhões de caixas em 2017 para mais de 19 milhões em 2021, de acordo com a Anvisa.
Os dados sobre o uso de medicamentos sem prescrição médica são limitados. Mas o aumento dos relatos nas redes sociais de quem toma estimulantes para se manter acordado e ter melhor performance cognitiva ou recorre a drogas não prescritas para dormir com facilidade ou experimentar alucinações tem levado as empresas a prestar atenção ao problema.
Alerta de perigo
Lidar com a dependência de medicamentos por funcionários costuma ser complicado. Porque dificilmente o usuário vai se expor na empresa. “Mas é importante encontrar meios de acompanhar os casos suspeitos — sem invadir a privacidade de ninguém —, porque a dependência pode se consolidar e resultar em desfechos ruins”, afirma Lucas Gandarela, psiquiatra e pesquisador do Laboratório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
Ele sugere ficar atento a sinais de abstinência. “Alguns são o contrário dos efeitos esperados com o uso do medicamento. No caso do Venvanse, é possível que a pessoa apresente pensamento lento, letargia, desatenção, cansaço. Já com o zolpidem, os sinais são parecidos com os de dependentes do álcool, como sensibilidade à luz, tremedeira, perda de memória e suor excessivo. Diante deles, a melhor providência é recomendar ao funcionário que se consulte com um psiquiatra para entender o que os sintomas indicam”, diz Lucas. Informar é outra ação que o médico considera fundamental. “As pessoas precisam saber que, ao ingerir remédios sem o diagnóstico, a prescrição e a dose corretos, estão sujeitas a efeitos adversos graves”, afirma.
O uso indiscriminado do Venvanse pode, por exemplo, aumentar o risco de sofrer um evento cardiovascular. “Esse tipo de medicamento estimula o sistema nervoso central, o que eleva a pressão sanguínea e a frequência cardíaca”, diz Lucas. “Assim, é possível que a pessoa acabe desenvolvendo arritmia e, se já tiver uma condição para um problema do coração, facilite a ocorrência de algo ainda pior. Sem falar de crises de ansiedade, dificuldade para dormir, agitação.” Como o Venvanse age aumentando a disposição no cérebro de noradrenalina e de dopamina, neurotransmissores responsáveis por colocar o corpo em estado de “luta ou fuga”, o abuso pode abrir espaço até para a síndrome do pânico e quadros paranoicos, em que o usuário se sente perseguido, vê vultos e tem comportamento hostil. A maior capacidade de concentração que resulta do processo, que deu ao fármaco a fama de potencializador da mente, não conta com respaldo científico para todos os públicos. Segundo o psiquiatra, não há evidências de que a substância beneficie quem não tem déficit de atenção.
Plena consciência
Os efeitos colaterais do zolpidem e demais drogas-z são igualmente danosos. Mas, à época em que começaram a se popularizar no Brasil, em 2011, mal se sabia que poderiam levar ao vício. Isso porque o discurso era de que tais substâncias eram uma alternativa segura aos benzodiazepínicos, calmantes como os conhecidos alprazolam (Frontal), clonazepam (Rivotril) e diazepam (Valium). “Está bem estabelecido pela ciência que, em doses altas e com o uso prolongado, os benzodiazepínicos levam à tolerância e à dependência, razão pela qual há muito cuidado com sua prescrição”, afirma o psiquiatra Thiago Marques Fidalgo, professor do departamento de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp). “Já no caso do zolpidem, a postura foi diferente. Como ele supostamente não apresentava esse risco, rapidamente se tornou uma das principais indicações para o tratamento da insônia, até que, de quatro anos para cá, surgiram diversos casos de dependentes. Ainda não temos estatísticas confiáveis, mas a quantidade, hoje, é impressionante. Existem, inclusive, dados do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde norte-americano que apontam mortes por overdose de drogas-z.”
O médico destaca que não há dúvida quanto à eficácia da substância quando devidamente prescrita e utilizada. O zolpidem tem uma ação mais específica que os benzodiazepínicos, o que resulta em menos efeitos adversos. Além disso, fica menos tempo no organismo. O problema está no uso indiscriminado, que traz outro perigo. “Se a pessoa toma o medicamento e não vai direto para a cama, como recomendado, pode começar a realizar coisas sem plena consciência do que está fazendo”, diz Thiago. “Eu mesmo atendi pacientes que efetuaram compras, trocaram mensagens e até mandaram nudes sob efeito do remédio. O risco de exposição social é muito grande.” O alerta está inclusive na bula.
Para o psiquiatra, a abordagem do RH das empresas deve ter caráter preventivo. “A dependência não surge de uma hora para a outra”, afirma. “Ela vai se estabelecendo conforme a quantidade, o tempo de uso, o metabolismo de cada um — então trazer esclarecimentos sempre ajuda. Tem gente que nem sabe que é o psiquiatra que trata problemas do tipo.” Algumas das boas iniciativas corporativas são campanhas de conscientização sobre a importância do cuidado com a saúde, palestras sobre remédios que podem causar dependência, divulgação de informações sobre a higiene do sono e promoção de práticas como o mindfulness, sugere Thiago.
Produtividade em revista
Todo mundo sabe que, independentemente do cuidado dos especialistas ao prescrever hipnóticos e psicoestimulantes, existe um mercado informal bastante ativo. E, no Brasil, a cultura da automedicação está bastante disseminada: o hábito é comum a 89% dos brasileiros com 16 anos ou mais, de acordo com uma pesquisa realizada no ano passado pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ) em parceria com o Datafolha. “Sempre há quem siga a dica de um parente ou conhecido que teve sintomas parecidos com os que apresenta, compre o medicamento por via informal, comece com o uso esporádico e, quando percebe, já está ingerindo a substância de maneira rotineira”, afirma o psicólogo Marcelo Rossoni da Rocha, mestre em psiquiatria e ciências do comportamento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador no Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (CPAD/HCPA).
Além do aspecto cultural, a pandemia, segundo o psicólogo, contribuiu para reforçar esse comportamento de risco. Antes, a redução dos empregos estáveis, o acirramento da competitividade, a pressão por produtividade e o excesso de trabalho já vinham impactando o desempenho de muita gente. Então veio o medo do desemprego, o home office, a necessidade de ficar mais tempo conectado e uma rotina que não delimita o horário profissional. E tudo isso sobrecarregou os profissionais de tal maneira que muitos passaram a apelar aos remédios como estratégia para lidar com a situação. Alguns entram em um círculo vicioso. “Para obter melhor performance e se manter por mais horas trabalhando, a pessoa toma o Venvanse. Aí chega a noite, o efeito da substância ainda está ativo e, para conseguir dormir, ela usa o zolpidem”, diz Marcelo.
Considerando esse quadro, o pesquisador defende que as empresas busquem revisar o grau de exigência em relação à produtividade dos funcionários. “Existem muitos profissionais acumulando funções que deveriam ser de outros. Uma revisão pode diminuir essa pressão e ajudar as pessoas a se sentirem menos sobrecarregadas”, afirma. Falar mais sobre saúde mental e oferecer benefícios que favoreçam o acesso a tratamentos também são iniciativas importantes.
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Este trecho faz parte de uma reportagem da edição 84 (fevereiro/março) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante