Depressão e trabalho
Não é tristeza. Não é burnout. É pior: um drama que gera um duro golpe na vida profissional. Entenda as agruras de quem sofre com a doença no escritório.
enti um funeral no meu cérebro… Os sentidos fugindo.” Assim a poeta americana Emily Dickinson (1830-1886) descreveu seu estado de espírito num período de grave depressão. A artista chegou a ficar 25 anos sem sair de casa, evitando visitas. Faltou, inclusive, ao enterro dos pais. Sua obra, consequentemente, ficou tão reclusa quanto ela: hoje considerada uma das figuras mais importantes da poesia dos Estados Unidos, a escritora só publicou dez de seus poemas em vida.
Ter o próprio trabalho sabotado por esse transtorno mental não é algo raro. Só no Brasil, o quinto país com maior porcentagem de deprimidos no mundo (o primeiro é a Ucrânia, veja o quadro), a estimativa é que esse transtorno custe US$ 78 bilhões ao ano por queda de produtividade, segundo uma pesquisa da London School of Economics.
Não é à toa. Deprimidos, em geral, tendem a produzir menos. Numa triste combinação entre indiferença com a vida, falta de energia e uma imobilidade quase intransponível, eles são os campeões da procrastinação. E do absenteísmo também. Perdem prazos, faltam a reuniões, escondem-se dos chefes e dos colegas. E isso não tem nada a ver com preguiça ou falta de compromisso, como alguns líderes podem vir a interpretar. É doença mesmo. E que precisa ser tratada para que a pessoa se torne funcional novamente – curar é outra história.
“Nunca foi tão fácil decidirmos o que sentir e o que não sentir. Há cada vez menos desconfortos inevitáveis para os que têm como evitá-los”, escreveu Andrew Solomon em O Demônio do Meio-Dia – Uma anatomia da depressão, livro que é referência incontornável sobre o assunto. “Entretanto, apesar das afirmações entusiasmadas da ciência farmacêutica, a depressão não pode ser varrida. Na melhor das hipóteses, ela pode ser contida. E contê-la é tudo o que os atuais tratamentos almejam.”
E aí vale separar logo a depressão de um parente próximo, o burnout. Este último é um esgotamento físico e mental, geralmente associado ao excesso de demandas no trabalho (os psiquiatras também já falam em burnout parental, de quem fica sobrecarregado pelos cuidados com os filhos).
Os trabalhadores podem ficar esgotados quando sentem que não têm mais controle sobre seu cotidiano, por estarem atolados de tarefas no escritório e em horas extras. Essas pessoas podem se ressentir de suas atribuições, dos colegas e líderes. Sentir-se irritadas e ineficazes, como se simplesmente não conseguissem fazer nada. Podem inclusive passar a odiar um emprego que um dia foi motivo de contentamento. Com esse estresse, ainda pode vir uma série de sintomas físicos: insônia, dores de cabeça, problemas gastrointestinais.
Além de muitos desses sentimentos serem diferentes dos de uma pessoa com depressão, há uma distinção definitiva: se você excluir o excesso de atividades no trabalho, o burnout passa. A depressão não passa.
Você pode mantê-la sob controle, mas ela é uma doença multifatorial, que pode vir na herança dos seus genes, pode estar associada a abusos na infância ou a traumas como a morte de alguém querido. Você pode ser um deprimido, mesmo que as circunstâncias da sua vida sejam as melhores possíveis. Gente rica, popular, amada, com relações estáveis pode ter períodos longos de depressão.
Porque, vale repetir: é uma doença mental – ainda que episódios negativos possam acionar gatilhos com mais frequência do que quando sua vida anda nos trilhos.
Essa confusão de motivos complica a empatia no ambiente de trabalho. “Se eu quebro o meu braço, tenho o gesso para mostrar que estou impossibilitado de executar certas tarefas, e as pessoas entendem imediatamente. Até ajudam”, diz a psicóloga Roberta Cyrillo. “Já se um colaborador está com depressão, não. Os colegas primeiro têm dificuldade de entender o problema; se entendem, não sabem como lidar. Deixam a pessoa quietinha, no canto dela. E o deprimido vai se diluindo, esmorecendo na frente de todos.”
Há a incompreensão de que você não escolheu se sentir deprimido, e os companheiros de escritório podem não entender por que você não faz algo para “se sentir melhor”.
Na depressão, diferentemente do burnout, em vez de irritação, ódio ao emprego, ressentimentos, o que sobressai é uma grande indiferença com tudo. Uma falta de vitalidade e gosto pelas coisas. Com o esgotamento, você pode não ter energia para a happy hour. Já o deprimido, caso seja arrastado para essa cerveja pós-expediente, vai permanecer com o semblante apagado, por mais animada que esteja a ocasião. “A depressão é um pesar desproporcional à circunstância”, definiu Solomon. “É uma coisa gradual e permanente, que mina as pessoas como a ferrugem mina o ferro.” Nessas situações de convívio incontornáveis, alguns ainda usam estratégias para esconder a doença (veja o quadro), forçando um sorriso amarelo para tudo. Uma máscara que tem sua razão de ser.
Quem contaria numa entrevista de emprego?
Uma mulher, assinando como Sophie, escreveu para o site da SHRM, uma associação americana de recursos humanos, dizendo que passou um tempo fora do mercado por causa de problemas com depressão. Quando finalmente se tratou e passou a tentar uma nova posição, era questionada sobre esse intervalo significativo entre empregos. Ela costumava contar a verdade, e os recrutadores imediatamente a descartavam.
Perguntando se estava agindo errado, recebeu uma resposta do próprio presidente da SHRM: “Você não é obrigada a se abrir sobre suas lutas contra a depressão numa entrevista”, disse o CEO Johnny C. Taylor Jr. “Na verdade, eu recomendaria que você não o fizesse. Em vez de contar da depressão, fale de qualquer curso ou treinamento relacionado à sua carreira que possa ter feito nesse intervalo. Assim vai passar a impressão de que continuou trabalhando, ainda que não no sentido tradicional da palavra.”
Se até o presidente de uma associação de RH recomenda que a pessoa omita a depressão numa entrevista de emprego, é porque os transtornos mentais ainda estão carregados de estigma. Pior: eles podem mesmo trazer problemas para a organização. Um executivo-chave na empresa que tenha uma queda expressiva de rendimento ou uma alta liderança que precise de um afastamento longo para se tratar não são substituídos facilmente.
E a busca por uma produtividade cada vez maior estimula a lei do mais forte, o que implica outro revés: a depressão, que muita gente confunde com tristeza, pode ser compreendida como coisa de “gente fraca”. O deprimido é visto como uma pessoa incapaz de assumir postos mais seniores na organização. Não seria confiável (e se ele tiver uma crise?). E ainda sofre com os maus hábitos do ambiente corporativo.
“A violência da comunicação no escritório é abastecida pela voltagem da alta performance”, diz Patrícia Ansarah, psicóloga organizacional e fundadora do Instituto Internacional em Segurança Psicológica. “Normalizamos falas agressivas, como ‘isso é mimimi’, ‘não quer brincar, não desce para o play’, ‘ele não aguenta a pressão’… E isso vai calando as pessoas que têm essas questões, elas ficam com medo de ser rotuladas pelo que estão sofrendo.”
Trabalhar de casa pode não ser uma boa
A boa notícia é que algumas empresas desenvolveram caminhos mais suaves para os funcionários expressarem o que estão sentindo – e para entenderem a profundidade desses sentimentos. Uma delas é a Alelo. O RH da companhia de gestão de benefícios corporativos trabalhou próximo às lideranças para conscientizá-las sobre um agravamento dos transtornos mentais nos últimos anos. E sobre como os gestores podem agir em cada caso.
“Uma diretora me procurou com suspeita de que uma colaboradora excelente, de alta performance, estava com depressão”, conta Soraya Bahde, diretora de pessoas e transformação da empresa. “A executiva estava fazendo um intercâmbio fora. Nesse período, sua mãe começou um tratamento oncológico e houve complicações. Essa colaboradora voltou completamente apática, com uma queda expressiva de performance.”
A solução foi orientar a executiva a trabalhar no modelo totalmente remoto, e assim ficar próxima da mãe nesse momento delicado. Além da demonstração de empatia com a executiva, o episódio revelou uma diretora capaz de identificar um caso de depressão no time e buscar ajuda.
Nesse trabalho voltado para a saúde mental, a Alelo também procurou uma psicóloga para permanecer no ambulatório da empresa, à disposição de qualquer colaborador que tenha um sofrimento psíquico e necessite de orientação. “Buscamos essa profissional porque nem todo funcionário tem repertório para entender pelo que está passando e buscar uma terapia fora da empresa”, diz Bahde. “Se for um caso mais grave, a psicóloga faz o encaminhamento para um psiquiatra.”
Se lidar bem com essa executiva da Alelo passou por direcioná-la para o home office, não quer dizer que o modelo seja um padrão recomendável para toda pessoa deprimida. Pelo contrário. De acordo com um estudo do Integrated Benefits Institute (IBI), organização de pesquisa sem fins lucrativos da Califórnia, o trabalho totalmente remoto está associado a uma maior probabilidade de sintomas de ansiedade e depressão (identificados em 40% dos respondentes, versus 35% do presencial). Em outra pesquisa, da Câmara de Comércio dos Estados Unidos com a consultoria RSM US, 64% dos executivos disseram que o home office afetou negativamente a saúde mental de seus funcionários.
Pistas do porquê disso? O mesmo estudo revelou que 73% dos trabalhadores em regime remoto se sentem isolados.
Uma análise do IBI sugere mais motivos. No home office, muitos funcionários lidam com interrupções constantes em casa (citadas por 43%) e batalham para achar um cantinho onde possam trabalhar em paz, 30% disseram que se sentem desconectados de seus colegas, enquanto 27% manifestaram dificuldade em equilibrar o expediente com as responsabilidades familiares. Junte a isso menções à casa em desordem e uma jornada de trabalho aparentemente interminável, e temos uma série de gatilhos para despertar o fantasma da depressão.
“Férias ilimitadas”
Para que seus funcionários possam se resguardar em períodos de insegurança psicológica, a Nilo Saúde, uma plataforma digital para atendimento médico, optou por uma solução pouco vista no Brasil: dar “férias ilimitadas”. Pela CLT, o colaborador tem direito aos seus 30 dias anuais de folga. Mas, se quiser descansar além disso, uma conversa com seu gestor na empresa pode render mais uma licença remunerada (o salário continua igual). E isso por um período que depende da necessidade e do bom senso: podem ser semanas ou meses.
“Damos bastante autonomia e responsabilidade aos colaboradores. Queremos que eles estejam bem para ter um alto nível de entrega quando estiverem aqui”, diz Victor Marcondes, fundador da empresa. “Isso significa que a pessoa pode desaparecer amanhã? Não. Temos uma cartilha de como usar esse benefício de uma maneira organizada, pedindo com certa antecedência.”
Acredite, isso não significa trocar sofrimento mental por anarquia. Tanto que, já com essa liberdade para férias extras, a Nilo cresceu dez vezes em 2022, reduziu seu turnover e identificou uma alta no engajamento dos funcionários.
A empresa ainda promove, trimestralmente, um dia específico para que as pessoas tenham folga e cuidem de sua saúde mental. A orientação é que busquem atividades como ioga, meditação, leitura num parque e outras formas de relaxamento. Ou o que a pessoa entender que será bom para sua cabeça.
Também pensando em prevenir transtornos maiores, a SAP Brasil, empresa do setor de software empresarial, uniu em 2019 suas áreas de recursos humanos, comunicação e marketing para lançar o programa “Saúde Mental Importa”. Um dos objetivos principais foi conscientizar líderes e liderados de que o tema precisa fluir naturalmente na organização. “A intenção era que o funcionário pudesse pedir ao seu gestor para sair mais cedo por causa de uma consulta a um psiquiatra com a mesma naturalidade que pediria para ir ao dentista”, afirma Fernanda Saraiva, diretora de RH.
A empresa passou a promover conversas mensais mediadas por psicólogos, debatendo temas como depressão, e workshops pontuais solicitados por gestores de áreas, também abordando algum tema relacionado à saúde mental. O programa todo foi desenhado com a supervisão de psiquiatras. Se deu certo?
Na última pesquisa de clima realizada pela empresa, questões ligadas a esse equilíbrio psicológico receberam retornos favoráveis em massa. O resultado foi de 82% de respostas positivas, ante 70% da edição anterior da pesquisa.
Expresso para o INSS
Na SuperVia, operadora de transporte urbano no Rio de Janeiro, o trabalho preventivo de saúde mental é imprescindível para o negócio. Os 270 km de linhas férreas passam por bairros violentos, onde funcionários da empresa são ameaçados e até agredidos. As condições do entorno acabam ampliando a incidência de doenças mentais, como depressão, transtornos de estresse pós-traumático e síndrome do pânico. Em 2021, a empresa teve 67 colaboradores afastados por distúrbios psicológicos com licença pelo INSS. Um problemão – para os colaboradores envolvidos e para a SuperVia.
“Levamos 18 meses para formar um maquinista. Se ele é afastado, preciso investir em mais 18 meses de treinamento para um substituto”, conta Kelly Coelho, gerente de RH. “Foi pensando em minimizar esses afastamentos e cuidar da nossa equipe que criamos, no ano passado, nosso Núcleo de Saúde Mental.”
Trata-se de uma equipe com psiquiatra, psicólogo, médico do trabalho, assistente social… todo um grupo preparado para antecipar os problemas, identificando o menor sinal de que uma depressão está prestes a surgir.
“Nossa equipe é 80% composta de homens. E são pessoas simples, que não conversam com a esposa sobre suas angústias, não dizem que estão tristes. Quando percebemos algum sinal de que há algo errado, um assistente social vai à casa do funcionário conversar com a família, mapear comportamentos, diálogos que nos deem subsídios para tratá-lo antes que chegue a esse ponto do afastamento”, diz a executiva.
Esse núcleo ainda realizou um trabalho de conscientização dos líderes, que agora conseguem identificar esses sinais de alerta. Às vezes é um colaborador que surgiu com um problema de pele, um desarranjo intestinal constante… Ou um sujeito expansivo que de repente passou a ficar mais quieto.
O trabalho, enfim, deu resultado. Dos 67 afastamentos de 2021, o número baixou para 49 no ano passado. No primeiro semestre de 2023, foram só oito.
Como lidar?
Cada caso de depressão é diferente do outro. Pode se manifestar de maneiras distintas e trazer complicações variadas – para a pessoa e para a empresa. Mas há algumas recomendações básicas para que o gestor lide melhor com um profissional deprimido.
O primeiro passo é entender o transtorno e seus sintomas. O gestor deve estar preparado para conversar sobre o assunto. Principalmente porque, em muitos casos, o doente falará com seu líder direto antes de se dirigir ao RH.
Permitir um horário flexível é outra boa medida, de acordo com especialistas. A depressão causa distúrbios do sono, que podem ser insônia ou mesmo dormir demais. Esse profissional raramente vai estar 100% às 8h30 da manhã. Além disso, em um dia qualquer, ele pode estar no ápice de uma crise logo cedo e ir melhorando com o passar das horas, tornando-se capaz de produzir entre a tarde e a noite.
Vale também sugerir uma maior proximidade do profissional com o grupo (caso a empresa não esteja no modo totalmente remoto). Quando deixadas sozinhas, as pessoas com depressão são mais propensas a ter pensamentos negativos. Isso piora ainda mais a situação. Mas primeiro o líder deve sondar se, para esse deprimido, ir ao escritório não será uma fonte de mais sofrimento.
Simplificar o escopo de trabalho também ajuda. A depressão pode afetar as funções cognitivas do colaborador. Dividir grandes projetos em tarefas menores lhe dará a chance de obter experiências de sucesso mais frequentes – algo importante em se tratando de uma doença que diminui o processamento do sistema de recompensa no cérebro.
Acima de tudo, por fim, o gestor deve mostrar-se genuinamente aberto. A depressão é um transtorno caro para as empresas. Mas deve ser vista, principalmente, pelo ângulo dos profissionais que sofrem por causa dela. Afinal, uma organização em que a saúde mental é deixada em segundo plano não pode se dizer um exemplo de gestão de pessoas. Pois as pessoas querem trabalhar com motivação, energia… saúde. Ninguém melhor que um deprimido para confirmar: é melhor ser alegre que ser triste.