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Felicidade imperfeita, mas real

O avanço da positividade tóxica contribuiu para a construção de um bem-estar idealizado

Por Fabio Rosé*
18 abr 2022, 06h16
Mulher negra veste blazer preto, usa óculos e tem os cabelos curtos. Ela sorri enquanto conversa com alguém, que não aparece na imagem
 (foto/Getty Images)
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F

elicidade. A palavra que foi considerada pela ONU em 2011 um Objetivo Humano Fundamental, a ponto de a organização criar um dia internacional só para ela, tem sido há muito distorcida por um oba-oba do sucesso e do contentamento em 100% do nosso tempo.

O avanço da positividade tóxica no trabalho acabou contribuindo para que um ambiente de bem-estar idealizado fizesse parte da narrativa repaginada de muitas organizações. Em sites corporativos, banners, descansos de tela e tantas páginas de mídias sociais, o tal propósito, tão pedido pelas novas gerações, era declarado em caixa alta, cores vivas, romantizando missões e visões por todos os lados.  Assim, pareceu por um momento que estava dada a solução para aqueles que buscavam outros motivos de vida além do sucesso profissional. E esse neo-sucesso com propósito tornava-se, então, a felicidade corporativa. Uma alegria possível, desejada. Por vezes até avaliada. A alegria entrou no vocabulário das empresas.

No livro A Sociedade do Cansaço, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han fala com sobre como o discurso da positividade e do desempenho é, hoje, um dos principais gatilhos para transtornos de ansiedade e depressão. Se, na Revolução Industrial, a disciplina e a ordem eram os pilares do trabalhador eficiente, no mundo corporativo contemporâneo a ilusão do “tudo pode ser” e do “só depende de você” criou uma força laborativa ainda mais rápida e lucrativa. Era o milagre da cocriação! Na narrativa em que os colaboradores podem “ser quem são”, mora a contrapartida do desempenho superior, que deve vir acompanhado de um pacote de alegria.

De repente, quem não se sente contente e motivado todos os dias para ser quem é — e performar melhor — se torna um peixe fora d’água.

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Nada disso se sustenta no longo prazo. Segundo Han “…os adoecimentos psíquicos da sociedade do desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal” (HAN, 2010, pág. 29).  Nessa dinâmica, o uso excessivo de positividade cria fantasias e, com isso, expectativas surreais.

A obra do filósofo sul-coreano foi escrita durante a pré-pandemia, mas ganha cores ainda mais fortes no contexto da Covid-19. Em meio aos desafios e privações desse cenário, o discurso da positividade se tornou impraticável. As empresas, pegas de surpresa, se viram obrigadas a enfrentar questões complexas de saúde mental de colaboradores – à distância. Os desafios dos ambientes corporativos refletem de maneira explícita nossos desafios individuais, familiares e sociais.

Desde então, observei com alívio as coisas começarem a mudar. A preocupação legítima com a saúde integral e com a própria experiência dos colaboradores tem inspirado muitas empresas a fazer uma nova e profunda revisão em sua cultura. Estamos vendo companhias cada vez mais dispostas a engajar lideranças a promover um diálogo honesto e empático com seus times. A trabalhar contextos e permitir que os conflitos e vulnerabilidades venham à tona, para serem tratados com a maturidade e com a naturalidade necessária, na forma que todos nós merecemos.

Aprendi que as experiências que a gente compartilha ocupam um espaço comum, contam uma história. Na minha cabeça, talvez, a nossa principal missão como líderes seja tentar fazer do ambiente de trabalho um local onde as pessoas possam estabelecer uma relação genuína. Não perfeita, mas genuína.

Somos nossos acertos e nossos erros, nossos altos e baixos. Quando não negligenciamos nossas limitações, reconhecemo-nos pela colaboração e somos parte do todo.  Miles Davis dizia a seus músicos que não existe pior erro do que não querer cometer erro nenhum. “Quando se toca uma nota, só a seguinte dirá se ela foi certa ou errada”. E eu entendo que essa nota seguinte pode ser tocada por qualquer um de nós.

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Promoções, aumentos salariais e benefícios também podem, e devem, fazer parte da equação. Afinal, muitos estudos comprovam que ninguém consegue ser feliz em insegurança financeira. Mas os efeitos positivos de promoções têm uma janela de tempo e é a sensação de pertencimento que vai “segurar a onda” do colaborador quando alguma situação sair do controle.

Deixar os conflitos virem à tona e lidar com eles de forma mais compassiva, em vez de evitar temas espinhosos com uma positividade artificial, pode ser o que falta para fortalecer a autoconfiança dos colaboradores e criar o caminho mais sólido para uma felicidade imperfeita, mas real. Assim, quem sabe, aquele contentamento e sensação de liberdade que sentimos às 18h de uma sexta-feira ultrapassem o final de semana e permaneçam conosco às 8h de segunda.

*Fabio Rosé é diretor geral de pessoas e cultura da Dasa

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