elicidade. A palavra que foi considerada pela ONU em 2011 um Objetivo Humano Fundamental, a ponto de a organização criar um dia internacional só para ela, tem sido há muito distorcida por um oba-oba do sucesso e do contentamento em 100% do nosso tempo.
O avanço da positividade tóxica no trabalho acabou contribuindo para que um ambiente de bem-estar idealizado fizesse parte da narrativa repaginada de muitas organizações. Em sites corporativos, banners, descansos de tela e tantas páginas de mídias sociais, o tal propósito, tão pedido pelas novas gerações, era declarado em caixa alta, cores vivas, romantizando missões e visões por todos os lados. Assim, pareceu por um momento que estava dada a solução para aqueles que buscavam outros motivos de vida além do sucesso profissional. E esse neo-sucesso com propósito tornava-se, então, a felicidade corporativa. Uma alegria possível, desejada. Por vezes até avaliada. A alegria entrou no vocabulário das empresas.
No livro A Sociedade do Cansaço, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han fala com sobre como o discurso da positividade e do desempenho é, hoje, um dos principais gatilhos para transtornos de ansiedade e depressão. Se, na Revolução Industrial, a disciplina e a ordem eram os pilares do trabalhador eficiente, no mundo corporativo contemporâneo a ilusão do “tudo pode ser” e do “só depende de você” criou uma força laborativa ainda mais rápida e lucrativa. Era o milagre da cocriação! Na narrativa em que os colaboradores podem “ser quem são”, mora a contrapartida do desempenho superior, que deve vir acompanhado de um pacote de alegria.
De repente, quem não se sente contente e motivado todos os dias para ser quem é — e performar melhor — se torna um peixe fora d’água.
Nada disso se sustenta no longo prazo. Segundo Han “…os adoecimentos psíquicos da sociedade do desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal” (HAN, 2010, pág. 29). Nessa dinâmica, o uso excessivo de positividade cria fantasias e, com isso, expectativas surreais.
A obra do filósofo sul-coreano foi escrita durante a pré-pandemia, mas ganha cores ainda mais fortes no contexto da Covid-19. Em meio aos desafios e privações desse cenário, o discurso da positividade se tornou impraticável. As empresas, pegas de surpresa, se viram obrigadas a enfrentar questões complexas de saúde mental de colaboradores – à distância. Os desafios dos ambientes corporativos refletem de maneira explícita nossos desafios individuais, familiares e sociais.
Desde então, observei com alívio as coisas começarem a mudar. A preocupação legítima com a saúde integral e com a própria experiência dos colaboradores tem inspirado muitas empresas a fazer uma nova e profunda revisão em sua cultura. Estamos vendo companhias cada vez mais dispostas a engajar lideranças a promover um diálogo honesto e empático com seus times. A trabalhar contextos e permitir que os conflitos e vulnerabilidades venham à tona, para serem tratados com a maturidade e com a naturalidade necessária, na forma que todos nós merecemos.
Aprendi que as experiências que a gente compartilha ocupam um espaço comum, contam uma história. Na minha cabeça, talvez, a nossa principal missão como líderes seja tentar fazer do ambiente de trabalho um local onde as pessoas possam estabelecer uma relação genuína. Não perfeita, mas genuína.
Somos nossos acertos e nossos erros, nossos altos e baixos. Quando não negligenciamos nossas limitações, reconhecemo-nos pela colaboração e somos parte do todo. Miles Davis dizia a seus músicos que não existe pior erro do que não querer cometer erro nenhum. “Quando se toca uma nota, só a seguinte dirá se ela foi certa ou errada”. E eu entendo que essa nota seguinte pode ser tocada por qualquer um de nós.
Promoções, aumentos salariais e benefícios também podem, e devem, fazer parte da equação. Afinal, muitos estudos comprovam que ninguém consegue ser feliz em insegurança financeira. Mas os efeitos positivos de promoções têm uma janela de tempo e é a sensação de pertencimento que vai “segurar a onda” do colaborador quando alguma situação sair do controle.
Deixar os conflitos virem à tona e lidar com eles de forma mais compassiva, em vez de evitar temas espinhosos com uma positividade artificial, pode ser o que falta para fortalecer a autoconfiança dos colaboradores e criar o caminho mais sólido para uma felicidade imperfeita, mas real. Assim, quem sabe, aquele contentamento e sensação de liberdade que sentimos às 18h de uma sexta-feira ultrapassem o final de semana e permaneçam conosco às 8h de segunda.
*Fabio Rosé é diretor geral de pessoas e cultura da Dasa
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