Durante os momentos mais tensos da pandemia, a ginecologista e obstetra Melania Amorim atendeu grávidas infectadas pelo novo coronavírus em um hospital público em Campina Grande, na Paraíba. No início de julho de 2020, na época aos 53 anos, a profissional testou positivo para a covid-19. Após duas semanas de licença, ela voltou ao hospital onde trabalha e, ao subir uma rampa como costumava fazer, sentiu falta de ar. A ginecologista passou a conviver com lapsos de memória e fortes enxaquecas meses após a infecção, o que ainda a afasta do trabalho com alguma frequência.
Melania é uma das várias pessoas que sofrem com a covid longa, quando os sintomas aparecem depois de a doença ter sido controlada. Segundo uma pesquisa publicada em agosto de 2021 pela revista científica britânica The Lancet, cerca de metade dos infectados pela covid-19 relatam sintomas mesmo um ano após a manifestação da doença. O levantamento avaliou 1.300 pacientes que receberam alta entre janeiro e maio de 2020 no hospital de Wuhan, na China, cidade considerada epicentro da pandemia.
“Tenho visto a covid longa, ou pós-covid, em quase todas as faixas etárias, inclusive naquelas economicamente ativas. As queixas vão desde coisas mais simples, como mulheres reclamando de queda de cabelo, até questões mais graves, como perda da força muscular por um tempo prolongado”, afirma o pneumologista Elie Fizz, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Vendo que o número de casos de covid longa era significativo, o hospital inaugurou o Centro Especializado em Tratamento Pós-Covid-19. No quadro da doença, além de sintomas relacionados aos pulmões, que estão entre os órgãos mais afetados, são comuns dores na cabeça e no peito, fadiga crônica e falhas na memória — sensações que podem começar em poucos dias ou até 12 semanas após o início da infecção. Inaugurada em agosto deste ano, a ala contava com cerca de 30 pacientes em setembro.
Elie também destaca problemas psíquicos, seja pela infecção em si, seja pelos traumas que podem surgir com todo o processo de internação. Ainda segundo o estudo divulgado na revista The Lancet, do público analisado, 26% desenvolveram sintomas de ansiedade e 23% de depressão. “A chave para o tratamento da covid longa é a multidisciplinaridade das equipes médicas, que devem contar também com psicólogos e psiquiatras”, explica Elie.
Acolhimento urgente
Além da atenção aos tratamentos de saúde, é preciso entender que muitos dos convalescentes da covid-19 são trabalhadores — que, portanto, precisam de apoio de seus empregadores para enfrentar esse momento delicado. “Os gestores são importantes na recuperação dos pacientes”, diz Luciana Lima, professora de estratégia de negócios, pessoas e liderança do Insper.
Apoiar e estabelecer uma relação de transparência e segurança para que o funcionário consiga fazer o tratamento para retomar seu desempenho no menor tempo possível é muito importante. Mas não é isso que acontece em diversos casos — e foi essa falta de cuidado que fez com que a médica Melania criasse a página @SindromePosCovid no Instagram, para acolher pessoas que, como ela, não sentiram tanto acolhimento por parte de seus empregadores. “Eu até achava estranho quando via pessoas faltarem ao trabalho por causa de enxaqueca, mas agora as entendo. Antes da covid eu não tinha o problema, e agora sofro crises alucinantes”, conta a médica, que também trabalha como professora e pesquisadora, mas que, no momento da entrevista, estava de licença. “Fiz a perícia e, apesar de a neurologista ter me dado 15 dias [de licença], o perito ficou tão impressionado com as repercussões do meu quadro que me deu 30 dias para que eu pudesse me recuperar”, diz Melania, ofegante e ainda se esquecendo de algumas palavras simples e de pequenas informações durante a entrevista que concedeu para VOCÊ RH.
Alba Gean, neurologista que acompanha o caso da médica, diz que o cenário ainda não é claro, mas que alguns pontos já começam a ser esclarecidos. Pacientes que têm formas leves, moderadas e graves podem apresentar um processo de inflamação endoarterial na microcirculação, conhecida como endotelite. Essas alterações inflamatórias, quando localizadas nas artérias, modificam o fluxo sanguíneo para onde levam suprimento. “Isso gera uma alteração celular onde o processo se instalou”, explica Alba. No caso de Melania, a inflamação aconteceu nas áreas mais profundas do sistema nervoso central, causando problemas de memória.
Nova realidade
Em abril, segundo levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), uma em cada três empresas citou a licença de trabalhadores pela covid-19 como um dos principais problemas enfrentados na pandemia. No geral, de acordo com a pesquisa, 34% das empresas reportaram o afastamento de funcionários.
Apesar da queda recente no número de infectados, a covid longa vem se mostrando comum entre a população acometida pela doença, e agora as empresas estão tendo que lidar também com funcionários que apresentam sintomas que duram mais do que as típicas duas semanas. Para se adaptar à nova realidade, Luciana Lima, do Insper, diz que os gestores têm que praticar a empatia. “Eles precisam entender que os empregados não estão com sequelas da covid-19 por um tempo maior do que o esperado porque querem. Os sintomas da doença variam muito de pessoa para pessoa e, às vezes, eles têm uma duração maior que limita o funcionário de cumprir suas tarefas na empresa, isso sem contar os acometimentos emocionais”, afirma a professora.
No Hospital Albert Einstein, o objetivo é que os gestores e a própria instituição cuidem de perto de quem está enfrentando esse problema. Segundo a diretora de recursos humanos da companhia, Miriam Branco, 2% do quadro de 14.000 funcionários apresentou sintomas de covid longa e precisou de afastamento. Além disso, essas pessoas receberam apoio e tratamento. “Saúde é o nosso negócio. Não faria sentido algum não atendermos às necessidades de saúde das pessoas que trabalham com isso”, diz a executiva. Os trabalhadores são tratados nas clínicas Albert Einstein, coordenadas por Rafael Ornellas. Médico da família, ele salienta que a covid longa precisa de tratamento específico. “Temos casos de pessoas que mantiveram os sintomas como tosse, cefaleia e dificuldade de atenção. Precisamos reconhecer de forma clara que esses casos são, sim, comprometimentos vindos com a covid e que precisam de um processo de reabilitação e cuidado diferente”, afirma Rafael.
O problema é que nem sempre esses sintomas são levados a sério no mercado de trabalho. “Se eu, que sou médica, estou sendo desacreditada quando falo que enfrento determinado sintoma, qual não será o sofrimento de outros pacientes na mesma situação?”, questiona Melania. E não é raro que trabalhadores nessas condições tenham medo de comunicar à empresa o seu quadro. Segundo um documento da Organização Mundial da Saúde (OMS) de março de 2021, os pacientes lutam para ser levados a sério e relatam que se sentem estigmatizados ao não conseguir um diagnóstico preciso.
Por isso, essa é a hora de as empresas tentarem ao máximo dar condições para que os profissionais afetados pela covid longa se recuperem e possam retornar ao trabalho quando estiverem bem. Segundo Luciana Lima, do Insper, as companhias precisam compreender a necessidade de manter o senso de pertencimento, mesmo quando alguém está afastado. “Uma pessoa pode estar incapacitada momentaneamente de exercer sua atividade profissional, mas isso não significa que a conexão entre ela e os membros do time e seu gestor deva deixar de acontecer”, diz.
No entanto, grande parte das companhias peca nesse sentido. De acordo com Melania, sua conta do Instagram a aproximou de diversos profissionais com sintomas longos e sequelas que estão desamparados pelas empresas onde trabalham. “Depois dos 15 dias de licença, acabavam sendo afastados pelo INSS e, quando voltavam, eram demitidos”, cita a médica, que disse que não recebeu atenção especial da rede pública, para a qual trabalha.
E o RH?
A recuperação para quem está com covid longa demanda uma mudança no formato de trabalho — afinal, algumas atividades podem ser mais complexas de exercer dependendo dos sintomas apresentados. Em conjunto com a área de RH, os profissionais da saúde do trabalho do Hospital Albert Einstein se esforçam para oferecer aos pacientes com sequelas ou sintomas longos um ambiente mais acolhedor e adaptado às novas condições.
Isso acontece desde o começo de 2020, quando a discussão sobre o enfrentamento à pandemia surgiu e quando se começava a pensar em soluções voltadas para a saúde e para a rotina de trabalho, como o home office e o trabalho híbrido, que dão suporte à reabilitação dos funcionários. Em casos leves da covid, após os 14 dias de recuperação, o Einstein direciona os pacientes para um acompanhamento longitudinal com uma equipe de atenção primária. Isso serve para identificar algum sintoma que permaneça ou, no melhor dos cenários, a remissão total da condição.
“A partir do momento em que há o teste positivo, você é acompanhado em todos os níveis de saúde, até na parte social”, afirma Miriam. Ela explica que houve casos de funcionários que, morando sozinhos, não tinham como ir ao mercado por causa do isolamento e precisavam de auxílio. Para ajudar, disponibilizou cestas de higiene e alimentos para os trabalhadores infectados, além de adaptar o trabalho às novas necessidades vindas com a covid-19.
Rafael, coordenador das clínicas do Einstein, explica que fazem parte desse acompanhamento longitudinal atendimentos específicos para cada tipo de sintoma. “Para pessoas que tiveram quadros mais graves da covid, necessitando de internação com comprometimento pulmonar e acometimento da saúde mental mais graves, a gente também consegue ser mais intensivo nos protocolos de cuidado”, diz. Segundo ele, grande parte desses profissionais já voltou a seus postos, e os resultados são satisfatórios devido à integração entre os cuidados com a saúde e com a rotina de trabalho. “Fazemos ações de RH para garantir um retorno saudável e que inclua essas novas necessidades”, explica. Para isso, a instituição trabalha em conjunto com os gestores e com a equipe de quem enfrenta o problema.
Bom para todo mundo
O apoio aos funcionários com covid longa, além de gerar mais engajamento, ajuda os negócios. “Existem estudos que mostram que a compaixão pela dor do outro pode ter impactos positivos na própria performance da equipe”, diz Luciana, do Insper. Ela explica que, em análises científicas sobre liderança positiva, já foi comprovado que existe uma relação entre comportamentos relacionados à compaixão e gratidão com senso de acolhimento e suporte. E isso acontece, principalmente, quando os líderes estão envolvidos em ações consideradas empáticas.
Ela ressalta, no entanto, que há casos e casos, já que existem empresas menores que estão, sobretudo durante o período de pandemia, em situação financeira mais complicada. Mesmo assim, existe um recurso disponível — e intangível: passar confiança ao funcionário para que ele tenha consciência de que não será dispensado no minuto seguinte à sua licença. “Existem empresas que não podem dar um apoio financeiro maior, mas conseguem dar esse suporte e criar uma relação transparente de segurança”, diz Luciana. E isso já vale muito.
Esta reportagem faz parte de uma reportagem da edição 77 (dezembro/janeiro) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante