Em meio à pandemia e à crise econômica e política, o cenário não anda fácil para a saúde mental dos brasileiros. Um levantamento da Fiocruz feito com 45.161 pessoas em 2020 mostrou os efeitos da pandemia: 53% dos participantes estavam ansiosos e nervosos, 40% se sentiam tristes ou deprimidos com frequência e 43% começaram a ter problemas para dormir.
Os números repercutem nas redes sociais. No Instagram, a hashtag “saudemental” soma 6,9 milhões de posts, enquanto no TikTok, os posts sobre o tema já contam com mais de 430 milhões de visualizações. Tornou-se comum ver vídeos de jovens discutindo os remédios psiquiátricos que usam, listando os sintomas que apresentam ou mesmo dando dicas que aprenderam na terapia. E, ao contrário das gerações anteriores, os mais jovens esperam que as empresas estejam prontas para acolher essas questões.
“Aqueles entre 18 e 25 anos estão mais vulneráveis às doenças mentais, mas também mais dispostos a falar e a procurar ajuda profissional para resolver o seu problema”, diz Sâmia Simurro, vice-presidente da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV). “A postura de não falar sobre isso e colocar para debaixo do tapete por medo ou por não saber como enfrentar mudou para uma postura de ‘vamos falar sobre saúde mental’.”
Debater e fazer
Mas ainda há preconceitos. Em uma análise de dados de 2020, a consultoria McKinsey revelou que 75% das empresas reconheceram existir um estigma em relação à saúde mental em seu ambiente de trabalho. Não à toa, 37% dos funcionários afirmaram que evitavam procurar tratamento porque não queriam que as pessoas soubessem que tinham um transtorno mental. Ao mesmo tempo, na busca por uma cultura menos hierárquica e mais acolhedora, as próprias empresas estão dando abertura para o tema surgir com mais facilidade, inclusive no processo seletivo.
“Antes, se buscava o candidato perfeito para a vaga”, diz Fatima Macedo, psicóloga e sócia-diretora da Mental Clean, especializada em promoção e gestão de saúde mental no trabalho. Segundo ela, os profissionais se sentiam obrigados a esconder como estavam, tentando apresentar uma versão perfeita de si mesmos na entrevista. Agora a situação começa a mudar. “As pessoas estão sendo convidadas a ser transparentes, a falar quem são e como estão”, diz. “Mas quem está do outro lado está preparado para receber essa fala sem preconceito?”
É uma pergunta importante. Afinal, dar a abertura sem ter a contrapartida de estar preparado para lidar com a questão pode gerar frustrações e perda de candidatos, além de manchar a marca empregadora no processo seletivo. “Se eu tenho uma experiência positiva, com empatia, vou continuar querendo trabalhar naquela empresa, mesmo se não tiver passado na entrevista”, diz Nathália Paes, responsável por desenvolvimento de negócios no InfoJobs, plataforma de recrutamento. “Mas, se minha experiência é negativa, isso prejudica a imagem da companhia.”
Tramita, inclusive, na Câmara um projeto de lei que prevê direitos e garantias a pessoas com transtornos mentais. De autoria de Benedita da Silva (PT-RJ), o PL 4918/2019 dispõe, entre outros assuntos, que as pessoas com transtornos mentais devem “ter direito a igualdade de oportunidades de emprego, assegurada proteção contra a exploração e a demissão do trabalho exclusivamente por motivo de transtorno mental”. Além disso, elas devem ser protegidas de discriminação em razão de transtorno mental. “Se for aprovado, será um grande marco”, diz Fatima, da Mental Clean. Ela explica que o texto altera a lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, defasada no contexto atual. “As empresas já pensam na diversidade para vários públicos e terão que começar a pensar nas pessoas com distúrbios mentais — e muitas delas já estão nas organizações”, afirma.
Mais acolhimento
“A pandemia reforçou o papel da humanização em todas as relações das empresas com os profissionais”, diz Cassia Messias, diretora de operações do Zenklub, plataforma de terapia online que, só entre o primeiro semestre de 2020 e o primeiro de 2021, aumentou em 272% o número de companhias atendidas. “Os recrutadores devem ter consciência de que não vão encontrar todo mundo bem.”
Na Flora, empresa de produtos de higiene e limpeza dona de marcas como Assim e Minuano, essa percepção levou a mudanças no processo seletivo. Pouco antes da pandemia, a companhia havia migrado o sistema de seleção para uma plataforma online, que oferecia a possibilidade de diversas etapas e testes. “Mas percebemos logo que não deveríamos usar todas as ferramentas disponíveis”, diz Lenita Freitas, líder de RH na Flora. “Ficou claro que processos extensos e com muitas demandas eram bem desgastantes para o candidato.” Por isso, a empresa decidiu manter apenas um teste, de alinhamento cultural, e duas etapas de entrevista.
Uma das fases eliminadas foram os vídeos de apresentação dos candidatos. “Muita gente com currículo bom desistia da vaga nessa hora”, explica Lenita. “Os profissionais deixavam para depois ou porque eram tímidos, estavam ansiosos, ou então porque já tinham feito muitos vídeos anteriormente.” Para ela, a mudança trouxe mais qualidade aos recrutamentos da empresa, que passaram a ser menos estressantes para os candidatos.
Uma das consequências de um processo mais humanizado é que certos assuntos aparecem mais. “A empatia e a presença deixam o candidato confortável em trazer questões de saúde mental”, diz Lenita. Segundo ela, quando isso acontece, os recrutadores tentam ajudar a pensar como a pessoa está lidando com isso, como superar. “Em vez de tentar ver como o candidato reage sob pressão, entendemos que com o acolhimento o profissional vai mostrar o melhor dele.”
Embora pareça uma atitude simples, ela representa uma mudança importante. Para Ronaldo Abe, diretor médico e de saúde corporativa na consultoria EY, um dos preconceitos mais comuns nas empresas é ver pessoas com transtornos mentais como menos capazes. “É comum que, em organizações que ainda não têm amadurecimento nem estrutura de suporte, o candidato com problemas de saúde mental seja barrado”, diz. “Elas têm medo de que vá sair caro, de que o risco de afastamento seja alto.”
Mas essa não é uma situação da qual dê para escapar. “Ninguém está livre de enfrentar uma depressão; ela é multifatorial, está presente na sociedade e ponto”, diz Cassia, do Zenklub. Para ela, as empresas devem focar o que podem controlar, criando ambientes seguros de escuta, conscientizando a liderança e trabalhando com elementos preventivos. O tema pode e deve aparecer nas entrevistas por iniciativa dos candidatos — resta às companhias aprenderem a lidar com o assunto sem preconceito. Fingir que está sempre tudo bem com os candidatos seria uma atitude pouco transparente.
No contexto atual, isso é ainda mais delicado. “O profissional que está entrevistando precisa entender o momento daquela pessoa, se faz tempo que está desempregada, se teve uma perda na família no último ano”, afirma Nathália, do InfoJobs. Apesar disso, ela lembra, questões invasivas não devem ser feitas. Perguntar se a pessoa está em tratamento ou se está tomando algum medicamento psiquiátrico, por exemplo, não pega bem. No lugar, devem ser feitas questões mais abertas, que deixem o candidato à vontade para falar se quiser, como questionar como está o momento pessoal e pedir para que ele descreva seu dia a dia.
Indagações como essas podem ajudar, inclusive, em um direcionamento mais acertado do processo. Se um recrutador percebe que uma pessoa está em um momento muito vulnerável, colocá-la em uma posição ou área em que o ritmo é intenso e as demandas são aceleradas pode gerar uma situação ruim para todos os envolvidos. No entanto, isso seria mais uma questão de alinhamento do que de competência. “O adoecimento mental não define o profissional. É só um estado: a pessoa está adoecida”, diz Fatima Macedo. “É claro que o sintoma impacta o profissional, mas isso não traduz quem ele é — você pode deixar de contratar alguém brilhante que naquele momento não estava bem.”
Diálogo aberto
Justamente para garantir uma experiência mais acolhedora no processo seletivo, no Elo7, plataforma de vendas online, toda a equipe de recrutadores é formada por psicólogos. “São pessoas preparadas para lidar com esse tipo de situação, principalmente com a ansiedade e o nervosismo nos processos”, diz Aline Garcia, gerente de RH no Elo7. Segundo ela, tem sido mais comum ouvir os candidatos trazer questões de saúde mental à tona.
“As pessoas chegam com uma demanda maior, falam sobre essa necessidade de ser acolhidas”, diz. “Elas têm mais discernimento sobre patologias e entendem que não é culpa delas se tiverem depressão ou ansiedade.” Para a gerente, manter esse diálogo aberto ajuda a garantir tratamento antes que os casos piorem. Aline relata o exemplo de uma funcionária que, ainda no período de experiência, contou ter tido um ataque de pânico. “Conversamos com ela, a encaminhamos para atendimento, falamos com o líder”, diz. O resultado tem sido positivo: a profissional relatou nunca ter imaginado que trabalharia num lugar que a acolhesse dessa forma, e está engajada no próprio tratamento.
Apesar de notar o estado emocional dos candidatos, isso não deve ser usado para taxar alguém. “Jamais vou apresentá-lo à equipe falando que ele sofre de ansiedade”, diz Aline. “Quando o candidato traz isso, acolhemos porque temos preparo para lidar com a questão internamente, então sabemos que podemos contratá-lo.” Ela lembra de uma ocasião em que uma mulher grávida, com sinais de ansiedade e depressão, era a melhor postulante. Mas a vaga talvez não fosse a ideal para o momento. Aline abriu o jogo: disse que ela era a preferida, mas que a posição tinha características que poderiam não ser as ideais para seu momento. “Falei que ela poderia tirar uns dias para pensar, e ela acabou optando por não continuar, mas elogiou nossa postura e saiu feliz do processo.”
Nada de rótulos
Não tomar esse cuidado na comunicação pode gerar a sensação nos candidatos de que foram prejudicados por terem trazido alguma questão de saúde mental ou, então, que sofreram discriminação. “Uma forma de evitar isso é mostrar ao longo do processo como essas questões são tratadas dentro da empresa”, diz Bruno Lucarelli, líder de recrutamento e seleção na EY Brasil.
Treinar e desenvolver a chefia, desde a diretoria até a gerência, também é uma forma de garantir que esse tema seja disseminado pela companhia. “Para avançar nas iniciativas, a participação da liderança nesse movimento é fundamental”, diz Sâmia, da ABQV. “É responsabilidade dela ser modelo, colocando na agenda a pauta do bem-estar. Os líderes devem ajudar a conscientizar e quebrar barreiras.”
Além disso, o próprio programa de integração já mostra que há apoio emocional para quem precisa. “O RH pode ser sutil nesse processo, dando acolhimento desde o primeiro dia, mesmo para quem não sinalizou problema algum”, diz Nathália, do InfoJobs. Deve haver, também, um acompanhamento periódico para ver como a pessoa está se adaptando ao trabalho. “Mesmo para os candidatos que não são contratados, você pode ter a política de indicar onde podem buscar apoio. É um aspecto mais humano”, diz Nathália.
Por outro lado, se a empresa não tiver nenhum programa de bem-estar emocional, de nada adiantará ter todos os cuidados no processo seletivo. Fatima, da Mental Clean, explica que há três níveis de intervenção para a saúde mental nas empresas: primário, secundário e terciário. A maioria das ações, como fornecer terapia, encaminhar para médicos ou dar treinamentos, se encaixa nos níveis secundário e terciário. Ou seja, trata o problema existente, mas não previne. Por isso é importante se dedicar ao nível primário, olhando para cultura, carga de trabalho, equipes e horários. “É preciso se perguntar quais estressores contribuem para o adoecimento na minha organização”, diz Fatima. “Parece que dá trabalho, mas já há uma série de questões com as quais os líderes precisam lidar que podem ter raiz emocional e ser evitados.”
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